Uma temporada depois, “The Peripheral” ainda não chegou ao cerne da questão

É como se o Metaverso, "Westworld" e "Ready Player One" tivessem um filho com uma necessidade inexplicável de recorrer à violência gratuita.

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PRIME VIDEO

Estreou, em episódio duplo, no passado dia 21 de Outubro a série “The Peripheral” na plataforma Prime Video. A série é uma adaptação da obra literária homónima de William Gibson – o génio responsável pela obra “Neuromancer” -, criada por Scott Smith, com nomes da famosa “Westworld”, como Jonathan Nolan e Lisa Joy, na cadeira de produtores executivos.

Ora, com esta fórmula mágica, cheia de ingredientes de qualidade, seria de esperar que “The Peripheral” subisse aos degraus da excelência sem grande esforço. Na verdade, não é bem isso que acontece. Foi-nos disponibilizado pela Prime Video o acesso à 1ª temporada da série, que tem oito episódios, e oito episódios não foram suficientes para declarar genialidade a esta produção audiovisual distópica.

The Peripheral” situa-se em dois futuros distintos. Um futuro não muito longíquo onde vive Flynne Fischer interpretada por Chloë Grace Morezt, e a sua família, no estado da Geórgia nos Estados Unidos da América. Um dia, com a arte matreira do seu irmão, Fischer tem a possibilidade de experimentar um simulador que a transporta para uma outra realidade, que acredita ser um jogo. Esse jogo, na realidade, é um futuro mais longínquo – precisamente 70 anos após o presente de Fishcer – em Londres, onde se desenrolarão as aventuras da série.

O primeiro conceito interessante explorado nesta série é o conceito de beta-tester. Hoje em dia sabemos o que é um beta-tester quando associado ao desenvolvimento tecnológico e ao mundo do gaming; aqui, Flynne Fischer tem acesso ao simulador quando o seu irmão Burton, que vive da compra e venda de produtos de realidade virtual, concorda “testar” o produto a troco de um pagamento – que percebemos ser prática… comum, neste universo. É assim que Fischer acredita afincadamente que está a simular um jogo virtual, qual “Ready Player One”, de forma até bem proficiente – só que não.

É que nesta produção, o quase-metaverso aqui explorado não é no mundo do gaming, mas na vida real. O tal futuro londrino, 70 anos depois, é também uma espécie de universo paralelo – mais um conceito interessante – meio que controlado por inteligência artificial e robots que aplicam a cem por cento a tecnologia de machine learning.

O propósito desta review não é entrar em grandes detalhes sobre o argumento que “The Peripheral” tem, ou deixa de ter, mas sim descortinar aquele que podia ser uma das melhores produções de sci-fi de sempre e parece ficar só pelo quase-lá.

Do machine learning à inteligência artificial, do beta-testing às viagens ao futuro e à personificação de simuladores reais em forma corpórea (através daquilo que a série chama de peripherals) – são tudo temperos característicos da escrita de William Gibson, mas que parecem ter ficado perdidos numa tradução qualquer.

Argumento, actores e efeitos especialíssimos

As personagens andam perdidas na acção, nas emoções e a série parece não querer passar de uma injecção de centenas de personagens de uma vez só, sem as conseguir contextualizar no tempo e no espaço. Um episódio que fica na memória apenas pela quantidade de tiros disparados e violência gratuita oferecida de uma personagem à outra não devia ter sido o foco de uma obra de arte de ficção científica que “The Peripheral” tinha tudo para ser.

Ainda assim, é preciso deixar anotado que a prestação do elenco da série acaba por amenizar este impacto menos positivo. Chloë Grace Moretz e Gary Carr são os protagonistas desta produção, e acabam por criar a sua história numa bolha protectora que conseguem ajudar a prender o espectador. Nem todos são incríveis, mas não identificaria nenhum actor ou actriz com uma prestação terrível.

Há ainda algo em que a série se destaca muito bem, porque não pode ser tudo uma chuvada de “mais-ou-menos”, e é no mundo dos efeitos especiais. São exímios, não há nada que se lhes possa dizer. Tomara muitas produções hoje em dia serem capazes de entregar este mimo visual aos seus espectadores. É quase impossível não sentirmos, como espectadores ávidos, que este mundo distópico é real, podia ser real para nós também – e isso se deve ao trabalho incrível da equipa responsável pelo CGI.

Também há que entregar pontos positivos à abordagem às consequências físicas de utilizar o simulador: é que uma vez que tudo é real, então a dor é real também, e o que um ser humano sofre enquanto no corpo de um ‘peripheral’ durante a simulação, também sofre na vida real. Como em tudo o que é desenvolvimento tecnológico, há que pôr na balança as consequências de ir para além das limitações físicas do ser humano, e esta abordagem que é tida de forma gradual na série funciona como uma boa ilustração.

Um “quase-lá” cheio de potencial

Ainda que a receita tenha tudo para entregar um prato espectacular, a sensação que fica é outra. Os episódios vão passando e as personagens parecem não sair da tal onda da violência gratuita e dos tiroteios desmedidos, das ameaças entregues como café da manhã, de personagens com pouca profundidade emocional. Os episódios vão passando, e aquele bicho de espectador expectante em conhecer mais uma abordagem a um mundo liderado por inteligência artificial começa a não ficar satisfeito. Quase como se a série se atrevesse a dizer: aconteceu, é aceitar, pouca explicação. E esta falta de explicação, com o foco sempre virado ao conflito, transforma “The Peripheral” em mais-uma-série-futurista-com-pouco-futuro, em vez de lhe dar o que merecia – como obra do génio que é William Gibson.

Em suma, nem sempre é fácil converter genialidade em atracção audiovisual. O que acontece, muitas vezes, é que as produções (e quem as cria) tendem a cair na ratoeira da acção previsível, por ser mais simples de traduzir num trabalho concreto. Com uma obra nas mãos que contribui activamente para o imaginário do desenvolvimento da inteligência artificial e do machine learning, “The Peripheral” chega quase lá, mas fica pelo caminho.

Os últimos episódios começam a querer explorar os pormenores intrínsecos desta distopia, ainda que apenas de uma forma mais superficial. Talvez haja salvação numa segunda temporada desta produção, caso o investimento em compreender melhor este mundo distópico que nos é apresentado seja maior do que o investimento em pôr estas personagens todas em constante conflito umas com as outras. De facto, investir algum tempo em construir a explicação deste futuro em realidade paralela, fosse a forma de elevar “The Peripheral” ao potencial que tem e à mestria brilhante que podia ter.

Para já,  série tem os seus primeiros dois episódios disponíveis na plataforma Prime Video e um novo episódio será disponibilizado todas as sextas-feiras durante as próximas semanas.