Corria o ano de 2008 quando um zapping na televisão mudou a forma como eu me via, como via o mundo e como iria em breve ver as minhas relações. Eu, uma miúda de 13 anos na altura, já consciente da minha orientação sexual (lésbica), pouco ou nada sabia sobre possibilidades relacionais, muito menos havia representatividade suficiente que me trouxesse o aconchego necessário para ter a certeza de que estava tudo bem comigo e que, sim, tinha direito a um futuro igual ao de todas as pessoas que me rodeavam.
Corria o ano de 2008 quando, pela primeira vez, vi uma série cujo foco eram questões LGBT+ (com maior foco no L), “The L Word“. Sabem quando algo de muito bom vos acontece ao ponto de sentirem que marca um capítulo novo na vossa vida? É isso que o “The L Word” representa para mim e em mim, um novo capítulo.
Hoje em dia, a representatividade de relações e famílias fora do padrão (heterossexual e monogâmico) são quase que garantidas. Principalmente se estivermos a falar de ficção típica de uma Netflix (grande foco em produções em inglês e espanhol nesta questão de diversidade). Hoje em dia é quase garantido que, ainda que não sendo suficiente, haverão pessoas a representarem diferentes bandeiras em séries “targeted” para audiências jovens/jovem adulta. Talvez por isso seja tão importante reforçar que nem sempre assim foi e quais as implicações da falta desta diversidade na vida de pessoas “reais” (não-personagem) da comunidade LGBT+ e na sua família nuclear.
Quando o “The L Word” surge na minha vida, assistir a um episódio trazia quase que uma sensação de que estava a ir contra tudo e todos, que estava a fazer o incorrecto, que tinha que ser segredo e talvez por isso tenha mantido o comando sempre na mão a um segundo de mudar de canal se alguém entrasse no quarto. Hoje em dia não sou a maior fã de televisão no quarto de pré-adolescentes; se consigo compreender que me foi quase que salvação? Consigo. “The L Word” não tinha uma agenda, nem ninguém se “torna” gay, lésbica, bi ou trans a ver uma série. “The L Word” foi o abraço que eu não sabia que precisava, foi o colo que me faltou e que me dizia: está tudo bem, Marta (e estava mesmo).
Para uma pessoa cuja identidade foge ao socialmente imposto, uma das maiores dores – uma das maiores confusões – é a incerteza de que poderá existir uma vida boa, um futuro promissor e uma paz em vivermos na nossa pele. A publicidade não me mostrava famílias com duas mães, as novelas quando fizeram (conto pelos dedos da mão) anunciavam o “beijo lésbico” durante duas semanas, tal não era a não-naturalidade com que olhavam para as questões LGBT+. Ninguém me perguntava por namoradas e, nas notícias, quando casais homossexuais eram assunto ou era porque tinham ocorrido crimes de ódio ou era a noticiar as marchas LGBT+. Afinal, onde é que estavam as pessoas iguais a mim?
Parece-me ingénuo dizer que uma série pode ter moldado o meu activismo, porque sei que o meu activismo nasce de várias fontes diferentes. Ainda assim, sinto-me confortável em afirmar que uma série permitiu que eu acreditasse em mim, que validasse os meus sentimentos e que, inclusive, ficasse entusiasmada com o futuro (em vez de o temer).
A parte negativa do “The L Word” foi exactamente o facto de ser tão exclusivo – ou pelo menos para mim, não havendo outras séries de fácil acesso com o mesmo foco. Por estar limitada a uma produção, acabei por ficar limitada a uma realidade (ficcional) que não era, nem é, verdade absoluta. O “The L Word” mostrava imensa instabilidade relacional e existiam momentos em que o entusiasmo por ver pessoas “iguais” a mim também se transformava em preocupação: a minha vida terá que ser igual a esta? Quando o ser parte de uma minoria é o foco do plot, é difícil separar aquilo que seria uma representação da “normalidade” ou a exclusividade desta representação. É por isso que é urgente inserir famílias não-padrão nos nossos ecrãs e palcos, em formatos “normais”, ou seja, sem estarem lá por serem o casal lésbico, mas apenas porque sim, porque estão – como qualquer outro casal estaria.
O mundo da ficção, o mundo audiovisual e o mundo imaginado pode ser um acto revolucionário. A quantidade de representatividade que existe hoje (se comparada com 2008) explica a maior facilidade com que mães e pais lidam com o “novo” – afinal, não são a primeira mãe com uma filha lésbica, afinal não foram o primeiro pai com um filho gay – a representatividade e a possibilidade de esta chegar a maior número de pessoas molda, efectivamente, a nossa sociedade, acalmando (ou não, dependendo da produção) os corpos de muitas minorias.
Corria o ano de 2008 quando percebi que as séries também nos falam sobre nós.