“Cavalos de Corrida” galopa pela paixão ardente e o inusitado em busca do american dream lusitano

É certo e sabido que em Portugal se sabe fazer muito, com muito pouco. "Cavalos de Corrida", situada nos anos 80, soube entregar um primeiro episódio recheado de motivos para continuar a seguir este bando de pessoas comuns envolvidas no maior assalto em Portugal até à data.

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Um churrasco. Uma arma. Uma conversa inóspita. «Eu quero dividir o dinheiro do banco», é uma das frases de Domingos que dá início a este primeiro episódio de “Cavalos de Corrida” que começa pelo final. Um vislumbre de um romance ardente, uma janela para um assalto, um tiroteio – e assim entra o genérico.

Situada no Portugal dos anos 80, “Cavalos de Corrida” leva-nos a conhecer um bando de pessoas comuns que se vêem envolvidas num dos maiores assaltos da história do país à data, e estas são as suas histórias.

As personagens principais desta trama de acção calorosa são Olinda e Domingos. Teresa Tavares e Tomás Alves vestem muito bem o papel destes dois lugares-comuns numa época cercada e marcada pela crise económica, mas também pelos sonhos de querer o equivalente ao american dream lusitano. Dois jovens que vivem uma paixão assolapada, ardente, tóxica, que sonham em ter um dia uma vida estável e, para conseguirem o que querem, cometem pequenos delitos.

Olinda é uma femme fatale cheia de inseguranças e Domingos é um engate da praça apaixonado por Olinda, que quer um dia ter uma família com ela. É nesta barra instável que se senta a relação destes dois, a quem Tomás Alves e Teresa Tavares se entregaram numa química espectacular no pequeno ecrã. Em apenas 45 minutos já entrámos na história de vida deste casal apaixonado, que irá levar tombos e trambolhões nos próximos episódios.

Para além deste romance que parece interminável, somos também introduzidos aos beatos Lúcia e Augusto, pelas mãos de Maria João Pinho e João Vicente, – um contraste acentuado e afirmado quando colocados ao lado dos protagonistas. Também eles com uma personalidade altamente afincada, bastante bem definida nos primeiros momentos em que se vê a sua interacção.

Num regresso ao pré-assalto a que somos expostos no início do episódio, a série dá uns passos atrás para explicar quem são eles, e a verdade é que o faz muito bem. Afinal de contas, importa saber: quem são estas caricatas personagens que, no final de tudo, dão por si com um dos maiores assaltos da história cometido pelos próprios, quando nunca em momento algum se pensavam encontrar nestas circunstâncias?

Os planos arrojados de “Cavalos de Corrida”

A abordagem escolhida para levar a cabo o fio-condutor em “Cavalos de Corrida” é um risco: tem-se visto, em muita abundância, uma aposta da RTP no conteúdo histórico, em contar o que aconteceu em Portugal nos últimos anos, quase como um registo descritivo e narrativo do que deve ficar registado em memória visual. Esta série também é, na realidade, um registo histórico, à sua maneira, contada de uma forma totalmente diferente do que estamos habituados a ver no pequeno ecrã português.

Assim o cenário e a envolvência tornam-se o quanto basta para enquadrar o contexto sócio-económico histórico retratado em “Cavalos de Corrida”: Anos 80, as casas singelas, os pratos mais baratos, as vestimentas.

Tal como a série “Stranger Things” o soube fazer tão bem, o espectador é transportado para essa realidade imediatamente. Com a ajuda das cores da imagem, ou dos planos aproximados e/ou arrojados de realização, é fácil para o espectador sentir-se submergido na época em que se passa este assalto meio louco. São estes planos aproximados que ajudam também a entregar as emoções que se vão sentindo na história de Olinda e Domingos, e que se vai agarrando que nem sanguessuga a quem estiver entregue ao episódio.

Talvez tenha faltado apenas um pormenor, a que o ónus da responsabilidade se poderá atribuir apenas e somente à falta de recursos financeiros: a banda sonora.

Atenção, não é que a banda sonora tenha sido má. De facto, tendo em conta que toda ela teve de ser construída de raiz, há que admitir que funcionou muito bem graças ao trabalho de Xinobi; mas talvez tenha feito falta uma Gloria Gaynor, uma Cindy Lauper, uns UHF. Músicas que suscitam memórias, que criam impacto. E elas, em “Cavalos de Corrida”, não existem porque os recursos não o permitiram.

É certo e sabido que em Portugal se sabe fazer muito com muito pouco. Esta produção soube entregar um primeiro episódio recheado de motivos para continuar a ver: da história das personagens que prometem ser muito mais do que aquilo que lhes vemos nestes primeiros 45 minutos; das relações humanas que se irão criar até ao momento em que a história irá casar com os primeiros minutos que o espectador vê; da própria temática que caminha na linha da moral a pé-coxinho e confronta o espectador com a sua própria realidade, à luz de um contexto semelhante.

A panóplia de personagens escolhidas, as suas mais diversas personalidades tridimensionais, o culminar fulcral num assalto são a clara abordagem dos criadores Marco Leão e André Santos na tentativa de dizer ao espectador que este bando, que se irá formar aos poucos, vem de toda a parte. Vem de todos nós, e das histórias que somos. Dada a oportunidade, dado o contexto social e a realidade económica, quantos de nós não nos veríamos também ladrões? Esta é a cereja no topo do bolo – a questão ética e moral que se coloca nas entrelinhas de “Cavalos de Corrida”, a série que promete ser a nova grande aposta da RTP.

“Cavalos de Corrida” terá um novo episódio exibido todas as quartas-feiras às 21h na RTP.