“Rabo de Peixe” é mais do que uma série de consumo rápido na ondulação turbulenta da Netflix

Esta nova aposta portuguesa para o mundo do streaming anuncia-se como um hit das séries de terras lusitanas (e provavelmente não só), carimbando o passaporte da língua materna para os quatros cantos do mundo.

  • Post author:Beatriz Caetano
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PAULO GOULART/NETFLIX

Impossível não ver o próximo episódio, rir à gargalhada a meio de cenas intensas e chorar nas mais emocionais. Assim é “Rabo de Peixe”, a nova série portuguesa da Netflix que invade o ecrã sem dó nem piedade e arrebata tudo e todos com a sua improvável comédia, a tensão comedida e as reviravoltas a cada novo capítulo.

Das impecáveis caracterizações aos cenários que pintam o ambiente socio-económico da narrativa e ao argumento escrito quase na perfeição, esta nova aposta portuguesa para o mundo do streaming anuncia-se como um hit das séries de terras lusitanas (e provavelmente não só), carimbando o passaporte da língua materna para os quatros cantos do mundo.

Tendo como base um acontecimento real, “Rabo de Peixe” deixa a desejar talvez mais hora e meia de narrativa – ou um par de episódios –, apenas como forma de desenvolver determinados pontos intrigantes que ficam, portanto, a meio. Porém, o estilo à la Netflix assim o exige e, no fundo, sete episódios acabam por ser suficientes para contar o grand scope of things desta improvável aventura e levar-nos a pensar como terão decorrido realmente as coisas all the way back em 2001.

Reduzindo as coisas ao bare minimum, construir uma série é muito semelhante a pôr em prática uma receita: basta ter os ingredientes certos e seguir todos os passos, et voilà! Temos em mãos um sucesso televisivo ficcional. “Rabo de Peixe” estreia-se como uma produção que esteve no forno o tempo certo, colocando no ecrã um pitéu de comer e chorar por mais. Sim, porque fica o desejo de ver algumas perguntas respondidas, especialmente no que diz respeito a um pequeno grande pormenor relacionado com o fim. Como tal, exige-se um second course para acalmar a curiosidade. Teremos direito a 2ª temporada?

still da segunda série portuguesa da netflix
NETFLIX

Do ritmo non stop às personagens non sense em “Rabo de Peixe”

Agora que já estamos habituados a esta era do streaming, rapidamente conseguimos identificar uma série (filme, documentário, o que seja) nascida para os trâmites que este formato pede: uma realização com ritmo, uma fotografia cativante, interpretações que prendam e um argumento com um hook apelativo. “Turn of the Tide”, como lhe chamaram em inglês, tem tudo isto e ainda mais uma pitada de non sense.

Quando tudo parece seguir um determinado caminho, eis que surge o dito plot twist e somos açambarcados por algo imprevisível que deixa escapar um «No way!». A acrescentar a todas as reviravoltas juntam-se os diálogos recheados de calão e palavrões, algo que, honestamente, traz uma lufada de ar fresco, porque quem não espera ouvir aquele «f*da-se» em situações como as que os protagonistas enfrentam? Além disso, a série tem também como missão mostrar a vivência da localidade – à data, a mais pobre da Europa. O que se esperaria, então? Certamente não um «Ora bolas, que maçada».

No que toca a interpretações, Albano Jerónimo revela-se, uma vez mais, um verdadeiro camaleão, mostrando que consegue envergar todo e qualquer papel que lhe é entregue, inclusive o louco Arruda, com os seus dentes cromados, o ar deslavado e a touca no cabelo para nada sair do sítio à hora do jantar. Já José Condessa prova novamente que tem mais do que capacidade para carregar o lugar de protagonista, mesmo numa mega produção para a Netflix. Não será surpresa, considerando o percurso profissional do actor que slowly but surely o tem colocado na passadeira do estrelato muito além das fronteiras nacionais.

still da segunda série portuguesa da netflix
PATRÍCIA ANDRADE/NETFLIX

O mesmo barco de elogios pode carregar Helena Caldeira, Rodrigo Tomás e André Leitão, os sidekicks desta desaventura. Cada um à sua maneira e individualmente contribuem para caracterizarem estes rapexinhos engolidos pela sorte e o azar em simultâneo. A miúda de cabelo cor-de-rosa que se expressa ao extremo para esconder tudo o que vai lá dentro, o prodígio do futebol que acabou preso ao lugar que o viu nascer e ao vício, e o rapaz que demonstra tudo o que é sem medos, mas a quem o amor ainda não bateu à porta.

Pêpê Rapazote tem também a sua quota parte em mais uma história sobre estupefacientes (do we see a pattern here?), assumindo o cargo de narrador bilingue que parece falar por experiência própria sobre as peripécias que assolam a vila açoriana. Uncle Joe é aquela presença familiar que nos acompanha entre os momentos de euforia e os de tensão máxima, espreitando a cada revelação quando já dávamos tudo por garantido. Acaba por se manifestar como mais do que uma voz omnipresente e toda-poderosa conhecedora do desfecho que nos espera, estilo G.I. Joe reformado, mas ainda com os truques todos na manga.

A ausência de sotaque numa história a dois tempos

By now, é dado adquirido que “Rabo de Peixe” decorre nos Açores. Como tal, muitos se questionam onde ficou o sotaque tão característico destas ilhas. Nesta série não fica, com excepção de uma ou outra personagem. E se umas o têm, porque não todas? Bem, quando vemos séries em inglês britânico conseguimos perceber se a personagem é de Oxford ou Liverpool? Ou em inglês americano se é de Boston ou da Flórida? Ou em francês se é de Vichy ou de Paris? Enfim, poderia continuar a comparação, mas acho que we get the point.

O sotaque açoriano poderia completar a caracterização de todos os intervenientes, é verdade, mas correndo o risco de sair terrivelmente deslocado e colocando-se a jeito para ser alvo de apontar de dedo pelos conterrâneos, a história decorre tal e qual sem o “açoriano” e não chega a ser algo do qual se sente falta. Confia-se no criador Augusto Fraga – que é açoriano – e na realizadora Patrícia Sequeira para terem tomado a decisão correcta, tendo em conta tudo o resto que está à vista. Quantas produções portuguesas onde são utilizados sotaques que não os dos actores podem dizer que saíram impecavelmente?

still na segunda série portuguesa da Netflix
PAULO GOULART/NETFLIX

Inquietações à parte, “Turn of the Tide” revela uma capacidade de incluir numa temática marcadamente de acção a crítica social, as consequências da adição aos estupefacientes, a religião, a aceitação da identidade sexual e até a eterna rivalidade entre o Continente e as Ilhas. Neste ponto surge um lado da série mais ponderado, a par e passo, envergado pela inspectora que se espera estar «melhor dos pezinhos», mas ao mesmo trapalhão e descuidado dos estereotipados inspectores, tal como o caminho feito pelos quatro jovens.

“Rabo de Peixe” encontra assim no mar revolto e na maresia o equilíbrio desejado para uma série simultaneamente de consumo rápido – pun intended – e que fundeia na memória seja por esta ou aquela razão. É o exemplo do entretenimento a ressuscitar épocas idas, reais, com efeitos colaterais, mitos e crenças – do peixe panado ao pão polvilhado com cocaína e outras cenas que tais sem cabimento na ficção –, adaptando-a à actualidade. Assinamos a declaração de aprovação e exigimos mais deste mundo.