“Black Mirror” está de volta para mostrar que nunca foi só sobre tecnologia

A base desta série criada por Charlie Brooker sempre foi a crítica social e é nisso que a mais recente temporada aposta a fundo. Basta olhar com atenção e deixar de procurar a nova invenção que nos poderá chegar às mãos.

  • Post author:Beatriz Caetano
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"Joan Is Awful", primeiro episódio da 6ª temporada de "Black Mirror" | NICK WALL/NETFLIX

A tecnologia, manifeste-se ela de que forma for, molda-se às sociedades humanas para satisfazer necessidades, sejam elas boas ou más. A tecnologia é também uma invenção humana. Como tal, revela-se sempre imperfeita na sua senda pela perfeição. Toda a criação deste ser humano que habita a Terra sairá sempre furada por desejos utópicos inalcançáveis. É muito desta noção que “Black Mirror” bebe desde o seu início, tenha ou não a ver com tech ou ficção científica.

Recordemos o episódio inaugural desta série: “The National Anthem”. Tudo começou com o rapto de uma princesa e uma extorsão. O primeiro-ministro britânico tinha de aparecer em directo na televisão a fazer sexo com um porco para que a jovem fosse libertada. Nada de futurístico ou tecnológico foi usado neste capítulo, com a excepção do poder dos ecrãs, sejam pequenos ou grandes.

“Shut Up and Dance” é o terceiro episódio da 3ª temporada. Nele acompanhamos Kenny, que, ao que tudo indica, é vítima de chantagem, ameaçado de que um vídeo onde se masturba será partilhado online. Torcemos pela personagem até ao derradeiro momento em que descobrimos que Kenny se masturbava a ver pornografia infantil. Drones, computadores, smartphones e redes sociais são outros dos protagonistas deste episódio, mas não mais que isso.

Servem estes exemplos para mostrar que “Black Mirror” nem sempre se muniu de um futuro tecnológico distópico onde a existência humana pode ser arquivada num super processador ou onde todas as memórias são guardadas através de uma lente de contacto e um implante cerebral. A base desta série criada por Charlie Brooker sempre foi a crítica social e é nisso que a mais recente temporada aposta a fundo. Basta olhar com atenção e deixar de procurar a nova invenção que nos poderá chegar às mãos.

Até que ponto se pode imaginar um futuro tecnológico onde tudo é maravilhoso ou horrível – ou ambos em simultâneo – se muitas dessas noções já nos são contemporâneas, nos acompanham no dia-a-dia e fazem parte do nosso vocabulário como se sempre tivessem feito? Que mais resta para especular do que aquilo que parece ter incessantemente algo mais a mostrar: o comportamento humano?

Chegamos ao fim da questão e “Black Mirror” continuou a incorporar a tecnologia na nova temporada, acrescentando-lhe algo mais: elementos sobrenaturais. Se sai fora daquilo que tem sido feito até então? Sim. Mas passada uma década desde a estreia da série não estaria também na altura de experimentar algo diferente? E no fundo os temas continuam ligados à base de toda a criação de Charlie Brooker – a tal crítica humana.

Isto é claramente visível quando a protagonista do 4º episódio, Mazey Day, acaba por se transformar num lobisomem. Pode ser vista como uma metáfora extrema para a forma como os paparazzi conseguem transformar os famosos em monstros se assim o quiserem, tirando a fotografia certa no momento certo. Os meios não interessam quando o fim que se quer alcançar é ter aquela imagem que quase nunca conta a história toda.

E no que toca ao capítulo que encerra esta temporada, “Demon 79”, não será necessário tentar encontrar uma explicação intricada para o que se vê nos minutos de duração. Tal como revelado logo no início, este episódio consiste num filme que existe no universo “Black Mirror”, produzido pela Red Mirror. O próprio criador explica que queria fazer algo diferente, explorar novas abordagens, e aconselha os espectadores a não procurarem uma explicação tecnológica para o que viram.

“Black Mirror” chega-nos assim com uma roupagem diferente da dos últimos anos, mas continuando a tocar nos pontos necessários: das consequências que a utilização de Inteligência Artificial pode trazer à indústria do audiovisual, à forma como as produções de true crime se tornaram uma forma de consumo que tende a ignorar os envolvidos naquilo que vemos ao sábado à noite no sofá, ao isolamento e luto, a esquecer que as figuras públicas antes de mais também são pessoas com direito à sua privacidade e ao facto de que, por mais anos que passem, as sociedades parecem querer sempre encontrar um demónio que possam culpar pelo mundo horrível que elas próprias criaram.