Sete anos depois, começa a descoberta. “One Piece” era uma das mais aguardadas live-actions dos últimos tempos. Adaptada da manga homónima da autoria de Eiichiro Oda, eis que a Netflix traz ao seu pequeno grande ecrã as aventuras de Monkey D. Luffy e os seus fiéis companheiros. E, calões à parte, que adaptação!
O legado de anime/manga em live-action não abonava muito a favor de “One Piece”. Os últimos anos foram marcados por várias tentativas falhadas de traduzir em formato western aquilo que o anime/manga, originário da cultura japonesa, sabia entregar. Mas parece que com um bom elenco, o toque de caixa do criador, amor à obra e muito dinheiro, tudo se consegue.
Assim, e porque tudo o que se quer, se consegue, a história de Eiichiro Oda versão Netflix conquistou os fãs da obra, os novos espectadores e, quiçá, os haters.
Há vida nas personagens de “One Piece”
Não era fácil, desde o início, trazer ao mundo real a história de Luffy – um jovem com o sonho de ser pirata e encontrar o famoso tesouro One Piece, assim deixado pelo célebre rei dos piratas Gold Roger.
Luffy é, em honestidade completa, um tonto. Uma personagem altamente carismática, extremamente focado no seu sonho, mas com uns traços de personalidades aliados à loucura e à inocência de uma criança, enquanto defende os seus amigos – que considera família – com garras e dentes ou, na realidade, com murros. Iñaki Godoy foi, sem se saber bem como, a escolha ideal. Uma cara de miúdo, a jovialidade característica de Luffy e a determinação de seguir o seu sonho e proteger os seus, totalmente traduzidas nesta entrega.
Como Iñaki, não há dúvidas de que mais ninguém podia representar o demónio Roronoa Zoro do que Arata Mackenyu que, para deleite de todos os espectadores, soube ser cópia da figura do anime original e ainda faz as suas próprias cenas de acção já que é altamente versado em trabalho de katana. Ou Emily Rudd – uma fã acérrima de “One Piece” desde criança, que dá a Nami uma nova vida. Entre Usopp e Jacob Gibson a diferença não é quase nenhuma, já que o actor consegue entregar as várias facetas do medroso contador de histórias do grupo.
Não podíamos também deixar de falar de Taz Skylar, que se entregou de alma e coração a Sanji, aprendeu a lutar e a cozinhar para chegar ao pequeno ecrã e dar aos espectadores uma personagem cheia de equilíbrio e elegância.
Mas não é pelos cinco principais que se fica o elenco, já que cada personagem que nos é entregue à medida que os episódios vão aparecendo é cada vez mais surpreendente. A verdade é que não era suposto gostarmos tanto desta versão inicial do Buggy The Clown, ou que Dracule Mihawk fosse ainda mais imponente do que é na sua versão original, mas Jeff Ward e Steven Ward, respectivamente, entregaram tudo em bandeja de prata.
Podíamos enumerar cada um dos actores e actrizes que fazem parte deste projecto megalómano que esteve no forno durante sete anos até chegar ao espectador, mas não há, de facto, um membro desta produção que tenha feito um mau trabalho ou que não seja uma peça relevante que encaixa no puzzle completo.
Não só do elenco se faz uma grande produção, como assim podem comprovar todas as tentativas de adaptação western de anime que sofreram pelo caminho e não foram bem recebidas pela crítica. Assim, a próxima peça deste grande tabuleiro é a caracterização.
Tornar uma obra como “One Piece” , recheada de loucura e desenhos pouco realistas, numa série com pessoas reais era, por si só, uma tarefa e meia. Assim, a caracterização das personagens, os lugares que visitam e os ambientes eram importantíssimos para garantir que, mesmo no mundo real, a essência daquilo que faz o anime e a manga original tão únicos estavam presentes nesta adaptação. E se estas equipas por detrás das cortinas responsáveis pelo guarda-roupa, pela construção de cenários, pela aura que abraça a série podiam entregar tudo a 100%, arriscamo-nos a dizer que entregaram mais que isso.
Claro que existiram alterações. Claro que a personagem principal não tem chinelos calçados, claro que os fatos não são 100% iguais porque a animação permite uma vasta criatividade que a realidade limita, mas esta realidade é uma animação por si só. Das roupas, aos acessórios, ao pormenor de cada cenário criado de raiz, desenhado, erguido, aos “telefones” especiais do mundo de Eiichiro Oda, enfim. À imaginação não se impuseram limites, à concretização também não.
É importante perceber-se que o investimento que existiu para erguer a série de “One Piece” foi essencial. Sem os estimados 16-18 milhões de dólares gastos/investidos por episódio, talvez não fosse possível concretizar todos estes pormenores, entregar ao espectador um trabalho final bem conseguido. De facto, o dinheiro, como o rio à entrada da Grand Line, sobe montanhas.
Já para não entrar no pormenor do VFX e CGI. “One Piece”, enquanto anime e manga, é um acumular de movimentos de luta irreais, cenas impossíveis de traduzir na gravidade que nos agarra, humanos, ao planeta Terra. Pelo menos, sem efeitos especiais. Mas terão sido estes 16-18 milhões de dólares, aliados a uma equipa mais do que profissional que permitiram que, na vida real – ou o mais dela aproximado possível -, pudéssemos ver acontecer todos os gomu-gomu no de Luffy, ou ver ao vivo e a cores os sea kings. E tirando dois ou três momentos menos bem conseguidos do que os restantes, “One Piece” não desapontou.
De East Blue à Grand Line: O que correu menos bem?
Elenco é um sim, caracterização e efeitos especiais também. E a história? Se há anime/manga com complexidade em termos de world building é “One Piece”. O anime, que é conhecido por ser extenso e recheado de vários acontecimentos ao mesmo tempo, tem a sua dificuldade acrescida quando transposto para formato live-action, já que seria quase impossível transpor 51 episódios em 8, que tem a série.
Quase é a palavra de ordem, neste caso. Apesar de alguns momentos importantes da história terem ficado de parte, a conexão entre as personagens que vamos conhecendo, o momento crucial de conhecermos os seus passados, as personagens secundárias relevantes que se vão cruzando pelo caminho – está tudo presente. Diríamos até que os pequenos easter eggs que vamos vendo pela série (para os mais atentos recorde-se a história que Nami lê sobre Noland, o name-dropping cauteloso de Jaya, a versão instrumental do genérico original do anime ou o aparecimento quase invisível de Don Krieg) serão talvez a forma carinhosa que a equipa encontrou para nos dizer “sabemos que estão a ver, fãs de ‘One Piece’, e esta é para vocês”.
Claro que numa produção desta envergadura, o olho clínico para as falhas está muito mais aguçado. O espectador espera ver tudo perfeito, depois de sete anos de trabalho intenso, tanto dinheiro investido e tanta expectativa. Entre uma gaivota que não está onde devia estar, uma saya que dobra, dois brincos a menos, ou um whisky que não oscila ao sabor do mar estão alguns dos erros de raccord que a série tem. Se quisermos fazer um paralelismo culinário, é como se no bolo completo trincássemos um grão de açúcar no sítio onde não se espera, e é chato, mas, no final, há que reconhecer que a receita funciona e o bolo está aprovado.
Enfim, entre um elenco que se deu de alma e coração, criadores apaixonados pelo mundo, a “trela curta” que Eiichiro Oda aplicou no processo de criação, uma condensação de informação inteligente que funciona para fãs e novos espectadores e todo o investimento feito, “One Piece” veio finalmente quebrar a maldição das adaptações live-action, deixando fãs e não-fãs a ter de admitir que mal podem esperar para entrar nessa Grand Line junto aos Straw Hat Pirates de Monkey D. Luffy a bordo do Going Merry.
“One Piece” está disponível na plataforma de streaming Netflix.