O ano era 2008 e nos cinemas pelo mundo todo estreava “Iron Man” – o filme que daria o pontapé de saída na viagem de montanha-russa que se tornou o Universo Cinemático Marvel (MCU). Nada podia prever (ou será?) que cerca de quinze anos depois o MCU fosse regado de filmes atrás de filmes, tantos deles sucessos de bilheteira, séries de televisão e uma legião de fãs mundial dos super-heróis da banda desenhada.
No entanto, tudo o que hoje conhecemos do universo Marvel começou a criar raízes há muitos anos. Fazemos uma viagem no tempo?
Timely Comics era o nome de uma editora de banda desenhada (BD) quando nasceu, em 1939. Os anos 50 viram a Timely Comics tornar-se Atlas Comics numa transição que iria eventualmente culminar no nascimento da Marvel que conhecemos hoje. Os super-heróis não eram o core da editora, mas o surgimento da fama e sucesso da DC Comics fez com que as agulhas da Marvel apontassem para essa vertente, com um twist.
Nasce então a história dos “Fantastic Four”, em 1961, e daí até aos dias de hoje uma avalanche de super-heróis ambientados ao mundo real. Foi a decisão de colocar estes super-heróis em planos reais, cidades verídicas e obstáculos mais assemelhados aos desafios emocionais dos humanos que fez com que a marca explodisse para se tornar no que conhecemos hoje: um universo de heróis humanizados, espelhados em séries de televisão, filmes, videojogos e, na sua génese, banda desenhada.
O estrondoso universo Marvel e DC Comics
Neste mundo da banda desenhada, onde a Marvel e a DC Comics se tornaram dois nomes inconfundíveis do sucesso, os talentos que o formam são infinitos. De autores conceituados a ilustradores de todo o mundo – incluindo talentos portugueses –, todos contribuem e trabalham para a sinergia destas grandes empresas que continuam regularmente a criar histórias e novas aventuras para os seus super-heróis.
«Já estou onde sempre sonhei», afirma Jorge Coelho ao TV Contraluz – um dos ilustradores e arte-finalista (profissional que finaliza uma peça iniciada por outro) lusos a trabalhar com a Marvel. Um percurso que se inicia com o sonho de miúdo e a aproximação ao mundo da BD e que culmina num alinhar de astros num evento onde estava presente um dos talent scounts da empresa.
O percurso para chegar à grande indústria norte-americana não é fácil mas é enriquecedor. «Caso aquilo que acho fixe com aquilo que é importante», refere o artista que revela que o facto de ter sido “forçado” a trabalhar como ilustrador noutras áreas que não a BD, como a publicidade, o levou a evoluir o seu estilo que eventualmente lhe garantiu projectos com a Marvel.
Para quem consome exemplares dos livros aos quadradinhos sabe que é mais do que natural encontrar vários géneros de ilustrações diferentes consoante os talentos envolvidos na sua concepção. André Lima Araújo, que colaborou com a editora norte-americana durante uma boa parte da sua carreira, revela que «foi precisamente» o estilo estar «solidificado» que lhe garantiu trabalho. «É uma espécie de frankenstein», admite o ilustrador acerca do seu traço, «com BD europeia, misturada com coisas de BD japonesa e com estilo americano também».
A natureza da indústria permite alguma liberdade criativa, mas há condicionantes. «Os prazos são terríveis», revela Daniel Henriques, um dos arte-finalista portugueses que colaborou com a Marvel e a DC Comics. O sentimento é partilhado entre os colegas de profissão, mas Daniel Henriques acrescenta ainda que a facilidade que sentiu em conseguir começar a sua colaboração com as grandes empresas norte-americanas de banda desenhada depressa se tornou num desafio exigente. «É um sonho que sempre tive [trabalhar na indústria norte-americana da BD], mas foi muito mais difícil do que eu estava à espera.»
Os desafios financeiros (e não só) da indústria da banda desenhada
A máquina montada destas empresas corporate parece estar suficientemente oleada para vingar e gerar receita, mas nem tudo são rosas. «Trabalhar para a Marvel ou para a DC hoje em dia é mal pago», sublinha André Lima Araújo, que tomou a decisão de se focar em projectos originais no seu futuro. «Um artista que trabalhe na Marvel ganha três vezes menos do que ganhava há vinte anos, em número». Revela o ilustrador que actualmente uma página que seja paga a 300 dólares era, há duas décadas, paga a 1000 dólares, sem ajuste de inflação.
Apesar da liberdade criativa que lhes é permitida, e para além dos prazos apertados ou de uma compensação monetária que fica aquém do expectável no mercado, há guidelines que são obrigatórias e das quais não é possível escapar quando se trabalha com uma grande empresa como a Marvel. «Há coisas que as personagens não podem fazer, como por exemplo fumar ou beber álcool», salienta André Lima Araújo.
De qualquer forma, Jorge Coelho é incisivo quanto à expressão que pode ter enquanto artista: «Querem tirar o máximo de ti, só te sugerem alterações se for algo que é mesmo taxativo.» Certamente não veremos o Capitão América com um Marlboro entre os lábios tão cedo.
Estes universos dos comics que se exprimem em histórias de super-heróis multiplicam-se por vários pilares de expressão, uns mais rentáveis do que outros. A banda desenhada é a raiz, a origem, daquilo que hoje em dia se reconhece como o Universo Cinemático Marvel, ou o Universo DC, mas a sua esfera de sucesso rapidamente perde a luta no ringue financeiro quanto ao retorno de investimento proporcionado por um dos outros pilares: o cinema e a televisão.
A influência e a conexão que se vê entre estes dois estandartes do universo reside sobretudo na identidade visual. «O início começa por aí», sublinha Daniel Henriques sobre as histórias da banda desenhada darem origem a produções cinematográficas e televisivas, mas depressa se verifica o contrário, especialmente quando a produção tem sucesso no mercado. «Quando saíu a série ‘Arrow’ eu estava a trabalhar no ‘Green Arrow’ e o ‘Green Arrow’ começou a adaptar o próprio fato para ficar alinhado ao que estava a ser transmitido na televisão», revela.
De qualquer forma, para além da identidade visual, a reciprocidade financeira não se reflecte da mesma forma na banda desenhada. «Seria bom dizer que uma influencia a outra, até a nível de sucesso, mas infelizmente isso não acontece», confessa o ilustrador, que acrescenta ainda que as séries de televisão raramente influenciam a venda de revistas de BD.
No Japão, o fenómeno acontece, mas o artista acredita que a razão para não haver um reflexo na indústria dos quadradinhos reside na natureza da banda desenhada. «Na BD acabas por ter muitas histórias, mesmo que o público queira regressar à BD depois de ter visto um filme ou uma série tem dificuldade em saber por onde começar.»
Apesar de existirem imensas editoras relevantes pelo mundo inteiro na indústria da banda desenhada, a Europa e mais especificamente Portugal não estão de todo no nível que se vê do outro lado do lago do Atlântico.
«Falta público que compre livros», são as palavras de André Lima Araújo, que acredita que apesar de existir um «mercado saudável de traduções» em Portugal, não existe um «mercado capaz» de produção. Para isso é preciso fazer um «trabalho longo» de promoção da leitura entre as camadas mais jovens. O sentimento é partilhado pelo ilustrador Jorge Coelho que oferece ainda que «ao nível da qualidade e da quantidade» não faltam talentos para produzir conteúdo.