A vida a alta-velocidade. Este foi o legado que Ayrton Senna da Silva deixou no mundo. Ou como carinhosamente era apelidado: Ayrton Senna do Brasil.
No ano em que se assinalam 30 anos desde a morte do piloto brasileiro, a Netflix fez chegar ao pequeno ecrã “Senna”: uma produção que prometia contar a história do piloto que se tornou um verdadeiro herói do desporto-rei do automobilismo.
Seis episódios de uma história de um génio do automobilismo que só viveu 34 anos tornaram-se numa ode a um dos mais importantes nomes da história da Fórmula 1. Tricampeão, rei das corridas à chuva, defensor da sua classe, Ayrton Senna é um nome incontornável para quem se declara fã do desporto automóvel
Parece quase impossível que seja fácil de olhar para uma produção de seis episódios e perceber que cada um dos minutos de conteúdo é recheado de amor.
Do argumento, à realização, ao elenco exímio, à caracterização, à direcção de casting, à banda sonora, enfim.
Se à partida poderia já ser impensável resumir a vida de um homem em seis horas de conteúdo de entretenimento ficcionado, o resultado permite sentir todo o cuidado que foi colocado em todos os momentos da produção para que nada faltasse.
Um amor que começa no kart, nas sombras dos anos 60 de um jovem de três anos com um sonho, uma ligação directa ao motor, e o pai de um futuro herói que só queria o melhor para o seu filho. Um dia esse filho iria ser um astro da Fórmula Ford, da Fórmula 3, da Fórmula 1. Um dia, esse pequeno rapaz iria conquistar o mundo – é assim que nos chega o primeiro impacto de “Senna”.
As cores quentes da cinematografia permitem imediatamente associar o calor humano, familiar, à importância que a família de Ayrton Senna teve no seu desenvolvimento. As mudanças de cor na fotografia/cinematografia ao longo da série vão sendo essenciais na forma como fazem transparecer ao espectador as nuances da vida de Senna. O amor familiar, a solidão da Inglaterra, a competição na Fórmula 1 maior que o mundo, o seu último fim-de-semana de vida.
Depois do calor da família, a Inglaterra. A fria, cinza Inglaterra que recebeu de cara trancada o piloto, mas que não o deteve. Mas se a fotografia já era importante para gerar diferentes emoções, que dizer do actor que deu vida a Ayrton. E que Ayrton. Gabriel Leone dá vida a este super-herói brasileiro do asfalto e se disséssemos que durante seis episódios vivemos isto tudo com Ayrton Senna, não estávamos errados.
A dedicação, o carinho com que Leone se entregou e emprestou o seu corpo e a sua arte ao astro brasileiro foram tudo o que era preciso para ser fácil, de repente, olharmos para o ecrã e vermos o velho Beco* há décadas.
Mas Ayrton não viveu sozinho e se Gabriel Leone vestiu essa pele como uma luva e conduziu esse carro como uma extensão de si próprio, o restante elenco não lhe ficou atrás. Laura Harrison é das poucas personagens fictícias da série, representada por Kaya Scodelario, mas o seu papel é imprescindível para criar a ligação imediata a “Senna”. É quase como se Laura fosse o espectador, o argumentista e o piloto num só. Faz de si um túnel entre o pequeno Beco, os fãs que o acompanham desde jovem e o adulto que deu a sua vida ao volante.
Alain Prost é o nosso antagonista, protagonizado por Matt Mella e, de todas as facetas do piloto, Mella, juntamente com a produção, conseguiram dar tantas camadas a Prost que acabamos sem saber se é o nosso maior inimigo ou se é a pessoa por quem temos mais respeito no mundo.
E podíamos passar um dia a destacar cada uma das personagens que completou esta história, desde a Xuxa no seu “xou” interpretada por Pâmela Tomé, à irmã Vivi de Camila Márdila, ao incontornável Ron Dennis de Patrick Kennedy, enfim. Não há dedo negativo que se aponte a cada um dos actores que fizeram parte do projecto dedicado a homenagear o rei do desporto automóvel.
Mas tal como na Fórmula 1, o campeonato não se vence só com a mestria do piloto. E, para esta obra se tornar um marco na televisão brasileira (e não só) foi preciso encaixar muito mais peças.
Se há algo em que “Senna” venceu, sem sobra de dúvidas, foi na capacidade de trazer à tona emoções fortes. É claro que o elenco teve a sua quota-parte neste plano, mas mais de metade da mini-série passa-se em corrida. Corrida essa que teve de ser gravada em vários planos, montada, transplantada para não só levar o espectador numa viagem até aos anos 70, 80, 90, como recriar a tensão e o stress que é conduzir sob-pressão a alta velocidade.
O resultado é de cair o queixo, os louros vão para todos os envolvidos na produção. Ainda que se note, de vez em quando, umas pinceladas de CGI nas transições de plano, é impossível não arrepiar ou soltar uma lágrima com Ayrton dentro do seu McLaren naquele GP de Interlagos à chuva torrencial.
O trabalho magistral das equipas de produção, dos argumentistas, do elenco, todos os envolvidos, é de louvar.
Mas começámos por dizer que este era um projecto recheado de amor. E, por mais que batamos palmas à técnica, à entrega, o amor ficou nos pequenos toques. Nas reproduções de cenas reais quase “à letra”, na reconstrução de uma relação pai-filho, uma relação mãe-filho, nos maneirismos de cada piloto, nas homenagens.
A homenagem não é só a Ayrton. Um episódio não é só um episódio, é uma cortina aberta para um passado onde Niki Lauda já era um nome icónico do asfalto (e podemos falar sobre a caracterização facial do actor, que ficou incrivelmente bem feita?), onde um paddock era regado de lendas do mundo automóvel, onde o barulho dos V6 se fazia ouvir como música.
“Senna” da Netflix é uma obra-prima, não só porque é uma homenagem a um génio, mas porque com estes seis episódios pudemos mais uma vez viver Ayrton Senna do Brasil.
*Beco era a alcunha de Ayrton Senna.