Um tiro na igreja e outro no coração, assim foi o primeiro episódio de “O Crime do Padre Amaro”

Entre erotismo, paixão ardente, licores, amores e humor imprudente, os 45 minutos do primeiro episódio mais parecem dez minutos e mal se pode esperar pelo número dois.

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A série “O Crime do Padre Amaro” é uma das grandes apostas da RTP para 2023. A estrear hoje, chega esta adaptação da icónica obra de Eça de Queiroz que chocou o universo religioso pela sua controversa natureza.

Esta é uma história de amor entre o Padre Amaro e a “menina” Amélia na cidade de Leiria do século XIX, num momento em que a religião se vê alvo de debates morais e discussões. A trágica história de Amaro e Amélia desenrola-se ao mesmo tempo que as restantes personagens questionam o papel da fé.

Tendo visto em antestreia, no passado dia 5 de Janeiro, o primeiro episódio da série em questão, podemos afirmar que será, sem dúvida, uma experiência especial. Já existindo adaptações prévias ao “O Crime do Padre Amaro” de Eça de Queiroz, a expectativa em relação a esta série estava, de certa forma, de mãos dadas com a reticência. Seria só mais uma? Seria considerada desnecessária?

A primeira abordagem que desconstruiu este pensamento veio directamente dos primeiros minutos. Antes sequer do genérico surgir no episódio, o tom que a série terá ficou imediatamente claro para o espectador. Quase como que um elevator-pitch que nos diz “é isto que podes esperar”. Humorístico, descarado e directo. Não houve medo de começar logo com o dedo na ferida que dói, no arrojado e no chocante. Se a obra de Eça de Queiroz já o é, certamente que a série o acompanhará.

Para além deste “bom dia, alegria” que nos é entregue pré-genérico, há que mencionar sem dúvida o trabalho do elenco. José Condessa e Bárbara Branco são o Padre Amaro e a “menina” Amélia desta produção e que bem que lhes assenta esta luva.

Se a química de um casal, que o é na vida real, pode ajudar a fazer transparecer o conforto entre as duas personagens, mais difícil poderia ter sido dar realismo às contracenas iniciais do jovem pároco e da tímida Amélia. Contudo, Bárbara Branco e José Condessa adaptaram-se na perfeição aos protagonistas desta história, deixando para trás a Bárbara e o José e permitindo ao espectador sentir realmente o nascer de uma paixão. A primeira troca de olhares, no meio do silêncio, é como se aquelas duas pessoas nunca se tivessem visto, nem mesmo noutra vida.

Mas não só de Amaro e Amélia se faz esta aposta. De Diogo Martins, a Joaquim Nicolau, a José Raposo, a Filomena Gonçalves e tantos outros, cada um no seu papel, ficaram tão bem encaixados que é impensável imaginar outras caras para representar estas personagens caricatas que regam Leiria do século XIX.

Uma análise à série "O Crime do Padre Amaro" da RTP
Bárbara Branco e José Condessa em “O Crime do Padre Amaro” | VOLF ENTERNAINMENT/RTP

Mas não só de amor se faz “O Crime do Padre Amaro” e se o crime é de Amaro, a sanção que se aplique à sociedade. Só num primeiro episódio, perdem-se a conta às tiradas disfarçadas de comédia leviana às doutrinas da igreja, que se vêem por vezes antiquadas ou sob escrutínio público por demais razões. Num momento em que cada vez menos se toleram certos e determinados preceitos impostos versus as situações controversas que têm visto a luz do dia, parece que “O Crime do Padre Amaro” chega no momento-chave, no busílis da questão.

O trabalho de preparação a que se propôs a equipa para a gravação desta série deu frutos. A Leiria que actualmente se atravessa de edifícios modernos e enormes, voltou a ser uma Leiria campestre, de areia e carroças, de campos verdes e poucas condições higiénicas, como se sabiam do século XIX: tudo em prol de uma retratação histórica fidedigna que assim o foi. Perdoam-se alguns erros de continuidade e raccord, que atrapalharam um pouco a noção de passagem do tempo, por tudo o resto que foi entregue, e fazem-se figas para que mais não haja. Não vale a pena deixar uma nódoa numa camisa tão branca.

Há que denotar ainda, por último, um pormenor que se sente muito curioso. Apesar de nos transportar, de uma forma muito bonita, aos tempos passados e à história de uma cidade que já nem se imagina assim, houve uma clara opção por manter um discurso modernizado no guião, tornando-o muito fácil de ouvir na voz do elenco que compõe esta produção. “O Crime do Padre Amaro” do século XIX, no século XXI.

Em suma, de escrutínio não se escapa a Igreja nesta produção a que os autores Alexandre Rodrigues, Manuel Prates e Leonel Vieira (também este último responsável pela realização) deram vida. Um Eça de Queiroz transformado, feito para os tempos modernos, feito para ser intemporal também. Uma produção portuguesa histórica de alto nível e, sim, precisávamos de mais uma adaptação da obra, precisávamos desta adaptação da obra.

Os padres envoltos e os seus comportamentos questionáveis, as senhoras púdicas que de púdicas nada têm, completam, enfim, uma miríade de momentos que permitem ao espectador perceber exactamente do que vão poder desfrutar durante os seis episódios que se seguem. Entre erotismo, paixão ardente, licores, amores e humor imprudente, os 45 minutos do episódio mais parecem dez e mal se pode esperar pelo número dois.

Hoje, pelas 22h30, na RTP, estreia o primeiro episódio da série “O Crime do Padre Amaro”.