Para quem preza a leitura, o tempo magnífico que se reserva num dia para passar a ler um livro é algo de precioso. É proporcional a satisfação, à frustração de se olhar para uma estante recheada e termos a certeza de que por mais que corramos a maratona, dificilmente chegamos ao ponto de conseguir ler em vida tudo o que desejávamos.
Nos dias que correm, com a democratização do cinema, com a proliferação de plataformas que nos oferecem outras tantas estantes repletas de conteúdo, fizemos um upgrade à frustração e agora sabemos que, por mais que nos esforcemos, para além dos livros, dificilmente veremos todos os filmes ou séries que devíamos.
Lembro-me várias vezes da história dum professor universitário, amigo de casa dos meus pais, que, num processo violento de se obrigar a ser selecto, entaipou a estante da sala, para se obrigar a ler apenas os livros a descoberto, os clássicos, forçando-se, através da privação do olhar, a ser objectivo na sua estratégia para enganar o tempo. Primeiro, os clássicos, depois todas as outras lombadas convidativas e por descobrir.
Importará perceber, com o avançar dos tempos, que clássicos ficam em primeiro lugar, que filmes ver antes de outros, que séries não sobrepor a qualquer outra actividade.
Sim, é uma questão de gosto, e haverá listas que poderão servir de guia para os mais indecisos, mas é importante que se procure as referências, que se encontre influências, que se aprenda gramáticas, de maneira a que a caminhada por estantes agigantadas, fique mais fácil e certeira para o caminhante à procura da fonte. O contraponto ao exagero da oferta das plataformas, em que passamos mais tempo no scroll do que propriamente a ver uma série, só se pode fazer se estivermos nessa demanda de outra forma: menos à procura da satisfação imediata do entretenimento (legítima, mas muito fruto de uma época que vivemos de consumo instantâneo e pouco edificante) e mais à procura das obras que vão marcando o seu tempo.
Esse critério, parecendo inocente até certo ponto, (uma “intelectualice” da treta!) dita várias consequências que não são de somenos para uma geração.
Em primeiro lugar, não conhecer as origens implica a qualidade do que se produz e cria, no limite até na maneira como se rompe com essas mesmas origens, com o que ficou para trás, com o que deve ser suplantado e substituído, ou até mesmo destruído. Por outro lado, contribui gravemente para o tipo de público de que um país dispõe — que importância tem um público exigente? A maior, porque exige das produções que não se limitem ao consumo extremado entre o produto “pastilha elástica” e a série histórica forçosamente pedagógica, de tal ordem e forma, que afastam, ambas, a atenção devida.
Não, no meio não está virtude alguma, mas na formulação exigente, objectiva e artisticamente adulta está o alvo que nos anda a escapar há décadas. Não é de admirar pois que a própria crítica (ou alguma dela) seja também ela um fruto pobre de uma falta grande de critério e edificação pessoal de quem decide opinar. A pior crítica, ao contrário da análise, pouco ou nada deve ao saber e ao estudo; ao invés disso, é post, tweet e chamariz fajuto. Este é o derradeiro resultado de não haver um caminhar cuidado sobre a história e as histórias, do passado ao presente, imaginando futuros.
É, julgo, necessário que apostemos na educação do olhar, procurando o gosto e não deixando que ninguém nos impinja a moda, como se fosse esse o caminho certo para o esclarecimento. Se mais não bastar, aconselho vivamente a que se ouçam alguns mestres como Godard ou Herzog, em entrevistas disponíveis no The Criterion Channel (talvez outra “intelectualice”, mas esta é fonte segura de APENAS bons filmes) em que ambos sublinham a urgência de se criarem imagens por oposição a um ritmo de vida que não nos deixa mais pensar ou reflectir.
Em jeito de conclusão, num mundo que não pára um segundo, em que tudo parece precipitar-se imparavelmente sobre um abismo, seja ele da fome, da pobreza ou da guerra, importa que ainda haja quem delineie uma estratégia para acalmar o relógio, tapar distracções e dar uma hipótese à cabeça de ficar mais conhecedora e esclarecida.