Entre o falso amor e “O Crime do Padre Amaro” resta apenas o pecado

Numa espécie de exagero cómico, e com frases no guião que causam até algum asco por mostrarem o que muitos pensam realmente, mas não dizem, “O Crime do Padre Amaro” entrega seis episódios recheados de sátira, caricatura, mas que, acima de tudo, dão que pensar.

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Foram seis episódios de “O Crime do Padre Amaro” para contar uma história. De amor? De loucuras? De falsidade? Na verdade, uma história de tudo um pouco.

O primeiro episódio de “O Crime do Padre Amaro” viria definir, ainda que em linhas muito ténues, tudo o que viríamos a assistir nos restantes cinco. À medida que a série se vai estendendo, a história que foi originalmente concebida por Eça de Queiroz vai ganhando forma.

Clero, donas de casa, bêbados e ateus – esta produção trouxe-nos de tudo um pouco para ajudar a construir a Leiria do século XIX, que claramente se rega de velhos e ultrapassados costumes, miragens, e tão paralela é à realidade do século XXI. Cada um dos padres que é introduzido revela-se como que um reflexo dos ditos pecados mortais e da hipocrisia que é vivê-los atrás das cortinas, com a altivez da graça de Deus a servir de escudo. A ganância, a gula, a preguiça, a inveja, a cobiça, o orgulho, a raiva – reflectidos no Cónego Dias, no padre Natário, no próprio padre Amaro.

As críticas ao clero e à igreja são mais que muitas – e bem entregues. Numa espécie de exagero cómico, e com frases no guião que causam até algum asco por mostrarem o que muitos pensam realmente, mas não dizem, “O Crime do Padre Amaro” entrega seis episódios recheados de sátira, caricatura, mas acima de tudo dão que pensar no contexto em que as falas são ditas.

Há um Cónego Dias pelas mãos espectaculares de José Raposo, que se considera acima dos pecados mortais, livre de poder fazer tudo o que lhe aprouver porque pertence ao clero – aquela horda acima do comum dos mortais. Há uma São Joaneira, que só Filomena Gonçalves a saberia fazer assim, que se faz respeitável, mas compactua com as loucuras do Cónego. Há um João Eduardo, com Miguel Raposo a conseguir bem trabalhar esta personagem pouco afável, ateu, com uma paixão interminável por Amélia, que é pintado como um vilão – porque é ateu –, mas ao colocar os seus comportamentos em perspectiva é fácil perceber que o próprio nunca disse nada mais do que a verdade, como ela é.

A verdade, essa que assalta o medo de que todos os pecados do clero venham à superfície e estraguem aquela imagem perfeita de uma igreja impenetrável.

O padre Amaro e a fragilidade humana

Mas, acima de tudo, há um padre Amaro que se esconde por detrás do amor. É que a história que se podia prever trágica, de Romeu e Julieta, entre Amaro e Amélia, não é nada mais do que uma história de um homem, um frágil homem, uma fraca figura, que não foi claramente destinado à devoção católica (que só se fez devoto pela oportunidade de vingar e ter melhores condições de vida). Um homem que se entrega a uma mulher, e que faz tudo errado. Um homem que, na realidade, apenas se entregou ao prazer da sexualidade, e não a Amélia.

Ao longo dos episódios vamos ficando a conhecer, afinal, quem é Amaro, o senhor pároco, que de senhor pouco tem. Esquivo, manipulador, possessivo, egoísta… violador. Uma personagem tão bem entregue que só por si consegue causar desconforto. Que se entreguem os louros a Alexandre Rodrigues, Manuel Prates e Leonel Vieira, autores deste guião, mas também a José Condessa – que foi capaz de dar vida completa a uma personagem com tantas camadas diferentes, que se foram revelando a pouco e pouco, em tão poucos episódios.

E com Amaro há Amélia, cuja viagem pelo sequestro à sua inocência é claramente entregue por Bárbara Branco nesta série de seis episódios. Houve uma menina apaixonada, uma mulher com a consciência pesada, uma vida curta e uma representação do papel da mulher no século XIX cingida à realidade de casar, da vergonha de ter sucumbido ao amor, que da sua parte o era, aos prazeres da vida.

Essa vergonha, impingida por todos os dedos que lhe são apontados pelas demais personagens, cujo ónus devia estar com quem a manipulou – esse tal de Amaro – é entregue de uma forma muito bonita pela actriz que dá vida a Amélia, espelhando as pré-concepções e os preconceitos de que é feita a sociedade religiosa contextualizada nesta “O Crime do Padre Amaro”.

Numa miríade de tantas coisas interessantes a acontecer em apenas seis episódios de “O Crime do Padre Amaro” não é fácil identificar as falhas. Contudo, existiram alguns momentos menos bem conseguidos.

Há histórias por explorar cujo sentido não se fizeram entender ali – como a de Libaninho, que parecia ser uma personagem tão presente inicialmente e, depois, no foco da história de Amaro e Amélia, acabou completamente esquecido; ou como a de João Eduardo, que apesar de ser uma personagem importante pelo que representa, pouca profundidade lhe foi permitida; ou o Abade Ferrão, que parece ser a única personagem íntegra na série e a quem não é dado tempo suficiente para se estabelecer como a voz da razão, no meio de tanta loucura.

Apesar de ter conseguido manter o ritmo na multitude de romances e de crimes que envolvem de forma fulcral as duas personagens principais, fica a sensação de que outras tantas ficaram para trás, esquecidas nessa Leiria onde a Igreja tinha sempre a última palavra, mesmo que errada, invocada em nome de Deus.

Então afinal, que história é esta a de “O Crime do Padre Amaro”? Sem dúvida é uma adaptação fiel à obra de Eça de Queiroz homónima. Sem dúvida é uma chapada de luva branca ao lobbie da religião de um século passado. Mas, acima de tudo, “O Crime do Padre Amaro” revelou-se uma carta aberta de comportamentos questionáveis, expostos sem pudor, feitos para confrontar o espectador com a dolorosa fragilidade do homem.