«A RTP é o grande motor da produção audiovisual independente em Portugal»

Há 30 anos na televisão, José Fragoso volta ao canal público português em 2018, altura em que a Rádio e Televisão de Portugal inicia um percurso demarcado dos restantes canais no que à ficção nacional diz respeito.

José Fragoso - Director de Programas, RTP.

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José Fragoso | PEDRO PINA/RTP

O jornalismo cedo começou a fazer parte da sua vida. Ainda em adolescente já colaborava com a imprensa e a rádio locais das Caldas da Rainha. A vinda para Lisboa quando entrou no curso de Filosofia levá-lo ia a fazer parte da equipa que fundou a TSF. Da rádio saltou para a imprensa – no Expresso e depois nos primeiros laivos de tinta do Jornal Público. Daqui à televisão seria um saltinho.

A SIC foi a sua porta de entrada, acabando por ajudar a pôr de pé o primeiro canal de notícias sem interrupção em Portugal. Nascia em 2001 a SIC Notícias e José Fragoso ocupava o cargo de director. Ao longo das duas décadas seguintes, o actual director de Programas da RTP percorreria um caminho (quase) sempre ligado ao pequeno ecrã, desempenhando funções na Direcção das três grandes estações televisivas de sinal aberto em Portugal.

Foi recebido na RTP em 2002, como director da RTP África e RTP Internacional. Mais tarde, em 2008, voltaria ao canal público como director de Programas. Ditaria o destino que esse seria uma vez mais o seu cargo dez anos depois, altura em que a Rádio e Televisão de Portugal iniciaria um percurso demarcado dos restantes canais no que à ficção nacional diz respeito.

Em 2017, numa entrevista ao semanário Sol, dizia: «A RTP corre o risco de perder toda e qualquer relevância.» No ano seguinte, volta ao canal como director de Programas. Um dos desafios que o esperava era impedir que o canal se tornasse irrelevante?

Sim, há sempre esse risco. A televisão é um instrumento com muitos anos de ligação ao público. Quando se começa a fazer o afunilamento desse público, os canais perdem a relevância. Nessa altura, este sector estava a começar a ter a concorrência das plataformas de streaming. Durante muito tempo, a RTP, a SIC e a TVI concorriam pela atenção dos espectadores portugueses. Hoje em dia, os espectadores estão divididos por esses três canais e por muitas outras dezenas de canais, plataformas, YouTube, até consolas.

Essa preocupação deve guiar-nos e a RTP deve tê-la para garantir que os espectadores portugueses têm uma alternativa de qualidade nas produções de entretenimento, ficção, documentários, animação, informação. Uma oferta que é capaz de se bater com as outras múltiplas propostas que existem. Esse exercício de aproximação ao público tem de ser sistemático e permanente. É esse o nosso desafio central: como conseguimos tocar os espectadores tão dispersos com o nosso conteúdo?

O risco [de irrelevância] existe sempre e se não estamos a trabalhar com o foco nas pessoas que nos vêem é muito maior. É um trabalho que temos feito para garantir que os espectadores continuam ligados aos nossos conteúdos independentemente de hoje em dia a televisão linear ser menos vista do que era há dez anos.

O maior foco que foi dado à parte ficcional na RTP era uma ideia que já levava quando regressa em 2018?

Eu já tinha estado aqui em 2008 e na altura tínhamos essa preocupação. Claro que o aparecimento das plataformas de streaming fez com que as séries enquanto formato passassem a ganhar um papel muito mais relevante nas televisões e nas plataformas com a multiplicação de produções. Em 20 anos, tirando casos muito episódicos com “Vila Faia” e “Bem-Vindos a Beirais”, a RTP não produziu uma novela. A questão das séries sempre esteve muito mais presente no quotidiano da RTP do que a produção da ficção em linha.

A partir do momento em que começa esta tendência internacional para a produção de séries, em Portugal a RTP tinha de ter esse papel. Além da RTP apareceram outros instrumentos: o Fundo de Turismo, também financiador e que atrai muitas produções para Portugal, o apoio à produção audiovisual dentro do ICA (Instituto do Cinema e Audiovisual), muitas regiões de turismo criaram as suas próprias film comissions, muitas autarquias locais passaram a olhar para os projectos de ficção como bons conteúdos para investir.

A entrada da Netflix, HBO, Amazon, Globoplay, Disney em Portugal acabou por trazer, a partir de 2019 até hoje, um novo ambiente ao mercado e ao audiovisual. A RTP, sendo um canal de televisão com forte investimento em telefilmes, em séries de oito ou dez episódios que tenham uma emissão vertical, mas que depois também ficam disponíveis noutra plataforma, ganhou bastante mais visibilidade e entrámos num ambiente muito próprio do nosso tempo.

Em 2018, a primeira oportunidade que me apareceu logo foi com a HBO para fazer “Auga Seca” e depois “Glória” com a Netflix.

As co-produções dão também uma alavanca àquilo que a RTP já se propunha a fazer?

A RTP sempre fez co-produções no passado, mas o que acontece recentemente é o efeito multiplicador. Em vez de uma série de co-produção de x em x anos, conseguimos fazer três ou quatro por ano.

Há também muitos parceiros internacionais que gostam de trabalhar em Portugal, portanto o país passou a ser um destino mais procurado para este tipo de produções. Temos boas equipas técnicas, temos condições para filmar, o país tem muitas geografias. Esses elementos são importantes.

Acho que os produtores independentes têm feito esse trabalho de consolidação da ficção portuguesa com bons guiões e boas histórias. Os actores e actrizes são muito competentes quer nas séries que fazemos internamente quer nas co-produções e muitas vezes em produções internacionais originais. Esse trabalho conjunto tem dado origem a uma regularidade muito grande de produções.

Já achamos natural que a RTP ao longo de um ano consiga movimentar três ou quatro co-produções internacionais, umas com a Amazon, outras com a Netflix, outras com a Globoplay, como acontece agora com “Codex 632“.

Em 2018, a primeira oportunidade que me apareceu logo foi com a HBO para fazer “Auga Seca” e depois “Glória” com a Netflix.

Menciona frequentemente nas apresentações de novas séries a espécie de “linha de montagem” criada que permite colocar no ar actualmente entre 10 e 14 séries por ano.

Chamo-lhe mais turbina do que linha de montagem. É um objectivo que só se consegue ao fim de bastante tempo e agora sentimos que funciona como deve funcionar, embora nunca se possa dizer que está consolidada.

Entre o momento em que um projecto nos chega e em que é posto no ar, diria que, no mínimo, um ano ou dois anos é o ideal para que ganhe maturidade. Mas temos muitos projectos a três e quatro anos, que é uma coisa que não acontecia. Havia a ideia de que quando um produtor tinha uma série, se produzia em três meses. Era um ciclo muito rápido.

Começámos a introduzir os factores tempo e maturidade, o que também significa projectos que saem mais caros. Como o financiamento não pode vir só da RTP, é necessária a ligação a outros financiadores, sejam canais de televisão, plataformas, ICA ou PIC (Portugal Film Comission). A escrita leva tempo, os trabalhos de pré-produção devem ser muito rigorosos, os tempos devem ser respeitados na rodagem. Na realidade, é preciso tempo para juntar essas peças, mas, quando se consegue, o resultado final é muito mais robusto e sentimos que muitos projectos ganham uma dimensão que não teriam se fossem feitos em seis meses.

O espectador tem hoje um grau de exigência muitíssimo elevado. Há quem diga “Os portugueses ainda não conseguem fazer assim ou assado” e quando aparece alguma coisa muito diferente dizem “Nem parece feito cá”, exactamente porque o espectador tem uma quantidade gigantesca de séries disponíveis por onde comparar.  

Está encontrada a fórmula secreta para o sucesso da ficção na RTP?

Não é secreta. Sabemos que esse processo tem várias etapas. O produtor define uma ideia e acha que pode ser trabalhada, depois é preciso escrever, definir o financiamento, o elenco, preparar um cronograma para programação, rodagem, lançamento, promoção. É preciso que a série esteja disponível, seja apresentada nos eventos pela Europa e no mundo e também vendida.

“Cuba Libre” está agora na Netflix. Esse caminho todo demora, às vezes, anos e é um processo essencial para garantir que no fim os conteúdos são relevantes, impactantes e criam, por vezes, dinâmicas na sociedade, como por exemplo “Pôr do Sol”.

Criar um conteúdo como “Pôr do Sol“, para nós, é muito satisfatório. É um conteúdo que ainda hoje, todos os dias, tem milhares de espectadores na RTP Play. É uma marca que fica e é isso que dá relevância à RTP e que nos aproxima dos espectadores.

Recebemos 160 projectos por ano. Seleccionamos menos de 10%, portanto há muito projecto que nunca consegue entrar em produção.

Neste caminho pioneiro começado em Portugal há cerca de seis anos, o que foi preciso correr menos bem para perceberem o que podia ter bons resultados?

Esse caminho vinha de trás. Já tínhamos muitas produções. Eventualmente, não com a escala que hoje temos. A RTP é a empresa de media mais atenta a essas realidades mais inovadoras. Ainda não havia Netflix e já havia a RTP Play. Nos últimos anos temos conseguido realmente dar escala a alguns projectos e criar essa tal regularidade de desenvolvimento, produção, exibição e venda dos projectos.

Recebemos 160 projectos por ano, 160 ideias de produtores/equipas/escritores diferentes. Seleccionamos menos de 10%, portanto há muito projecto que nunca consegue entrar em produção.

Dos que entram em produção tentamos que haja uma diversidade. Tentamos também que algumas séries sejam produzidas/realizadas por equipas mais jovens. Outras que sejam trabalhadas com foco num determinado evento, como acontece com o 25 de Abril no próximo ano, com “A Sibila” nos 100 anos da Agustina Bessa Luís, com o filme de António Variações…

Gostamos que as séries tenham 400 ou 500 mil espectadores quando são colocadas na RTP1 em horário nobre. Há séries que vão para o ar mais tarde, porque têm uma linguagem mais adulta e essas conseguem ficar na casa dos 200 ou 300 mil. Depois há séries que têm muito bons resultados na plataforma, bastante tempo depois de estarem no ar. Significa que há pessoas que todos os dias estão a descobrir séries que estiveram no ar há um, dois ou três anos. Quando uma série consegue ter esses resultados, para nós é um sucesso.

Um insucesso seria uma série ficar mal, não cumprir os objectivos de circulação e não me lembro de nenhum exemplo que tenha tido um resultado menos satisfatório.

Ainda que esteja a ser feito este trabalho de desenvolvimento do audiovisual, há críticas que se fazem ouvir, nomeadamente “Não é suficiente”. Como olha para este lado da moeda?

Acho que suficiente nunca será. Mal seria chegarmos a um ponto em que dizemos “Ah, agora já é suficiente”. O nosso objectivo é sempre fazer melhor. Temos uma análise que qualquer espectador, analista ou curioso pode fazer: pegar no que se tem produzido e comparar com o que se fazia há cinco, dez ou 15 anos.

É preciso ter uma visão muito distorcida para dizer que o que se faz hoje em termos de ficção portuguesa não está muitos furos acima daquilo que se fazia no passado. Isso significa que houve uma aprendizagem, capacidade de evolução do mercado e que isso nos pôs num patamar muito mais relevante do que aquele que tínhamos.

Significa também que temos de continuar a ser exigentes e não andarmos a dizer que tudo o que havia para fazer está feito e isto é suficiente. Não é. Temos de ter noção que a área da televisão nunca pára, está sempre em evolução.

Daqui a dois anos vamos ter de fazer outra coisa que seja impactante para os dois anos seguintes. Nesta área há uma criatividade que não pára, as pessoas estão sempre a pensar em projectos que podem ser diferenciadores e o nosso objectivo é que se subam os furos de uma produção para outra, aprendendo com as produções dos vizinhos, aprendendo o mais possível com as produções internacionais, seguindo o caminho que achamos que deve ser o da RTP e da produção portuguesa, mas sem parar e sem criar uma zona de conforto.

É preciso ter uma visão muito distorcida para dizer que o que se faz hoje em termos de ficção portuguesa não está muitos furos acima do que se fazia no passado.

Em Maio deste ano, Nicolau Santos (presidente da RTP) dizia no 32.º Congresso da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações que se a RTP, a SIC e a TVI produzissem juntas para o streaming teriam outra capacidade para negociar. O futuro do audiovisual em Portugal pode passar por uma aliança entre as várias estações televisivas?

Eu acho que, no futuro, pode haver formas de cooperação entre os três operadores portugueses de televisão em aberto. É um tema no qual vale a pena pensar. Não é um tema fácil, mas acredito que seja, em alguns casos, possível encontrar situações que possam ser globais e onde se possa cooperar. Tem acontecido noutros países, portanto, se acontecer em Portugal não será a primeira vez, seguramente.

Em França já houve experiências de plataformas comuns. As operadoras em Inglaterra juntaram-se e estão a preparar uma plataforma que há-de nascer no início de 2024. Há situações deste género também nos países nórdicos.

Digamos que é um terreno que deve ser analisado em função dos interesses dos três operadores. E, do meu ponto de vista, não vejo nenhum inconveniente. Se tem soluções que podem ser úteis, não acho que seja um bicho de sete cabeças.

Embora prefira não aparecer, é a cara de uma mudança na RTP no que toca à produção audiovisual. Como encara esta responsabilidade? É uma vitória pessoal?

Não encaro. Acho que os processos é que contam. O facto de termos feito um conjunto de dinâmicas em Portugal é a dividir por instrumentos que são criados pelo Estado português de apoio à produção internacional, que fez com que muitos produtores internacionais olhassem para Portugal.

Tem a ver com as dinâmicas que a própria produção de streaming introduziu no audiovisual português, criando oportunidade de mais conteúdos serem vistos, o facto de termos hoje equipamentos que permitem ver em casa séries e filmes do mundo inteiro. Tudo isso aliado ao trabalho dos produtores portugueses que têm, nos últimos anos, conseguido criar projectos muito interessantes. É tudo uma soma.

Não vou dizer que a RTP não tem um papel importantíssimo, porque tem. A RTP é o grande motor da produção audiovisual independente em Portugal, isso é verdade. É impossível imaginar a produção audiovisual de ficção e até mesmo de documentários e telefilmes sem a RTP. Provavelmente não aconteceria. Este trabalho faz parte da nossa missão enquanto operadora de serviço público.

Acho que o meu papel tem sido o de tentar garantir que estas tendências todas consigam juntar-se em projectos para criar objectivos comuns e, sobretudo, criar a oportunidade de o espectador português não ficar para trás.

O facto de a RTP investir na produção de séries, filmes e telefilmes significa que, independentemente de haver uma produção de novela que é muito relevante na indústria, existe oportunidade de o espectador português ver conteúdos produzidos no seu país com histórias da sua realidade, de atrair outros players para a realidade portuguesa.

Fico contente, porque sinto o resultado. Digo sempre que é um privilégio para nós trabalhar com tanta gente em projectos diferentes. Ao longo do ano, são muitos profissionais com quem nos relacionamos e isso é também muito estimulante para quem trabalha neste sector.