Se “Braga” podia ter sido um marco importante no mundo do audiovisual Português, então deixou muito a desejar.
Uma história que começa com um impulso muito bom, abordando não só as possíveis realidades das comunidades ciganas – incluindo no seu elenco actores e actrizes ciganos –, mas também as controvérsias da igreja entre uma imagem de perfeição versus acusações de abusos de menores das quais a dita “santa casa” tem sido alvo.
Da realidade junto às comunidades ciganas poucos juízos de valor podemos fazer – já que não é uma realidade na qual nos insiramos para saber apontar dedo ou bater palmas –, mas o certo é que há alguns estereótipos que aparentam estar demasiado exacerbados. De qualquer forma, que fosse esse o “mal menor”.
É que “Braga”, apesar de ter um conceito extremamente importante, relevante para os dias actuais, interessante e com potencial enorme para criar oito episódios impactantes, deixou-se ficar aquém no meio de diálogos confusos, falta de conexão entre as personagens, fraca entrega de grande parte do elenco e pouco cuidado na pós-produção.
Desconstruamos aos poucos.
O discurso que acompanha as personagens de “Braga” – do Padre António, à Helena, à família Bonifácio, aos altos clérigos da Igreja, entre outros – são fracos. Não há outra forma de colocar, já que tanto são altamente eloquentes, quase dignos de uma peça de teatro ao estilo “King Lear”, como são corriqueiros e nada profundos. Acabam, assim, por ser origem de uma interacção entre as personagens extremamente forçada, já que o facto é que, na vida real, ninguém fala da forma como a maior parte das personagens fala.
Ora, se os diálogos deixam qualquer espectador de pé atrás, a frustração não termina por aí. As próprias personagens não têm um contexto coerente. Para além de a maior parte dos actores ter tido uma notória dificuldade em colocar na dita body language uma expressão física das suas emoções activas, também a química entre as personagens ficou aquém de ser conseguida. Muito provavelmente resultado da falta de fisicalidade em algumas cenas mais emotivas.
Nada como uma família inteira perder uma casa para um incêndio e as personagens, de forma impávida e serena, como se não fosse um ambiente de stress autêntico, debaterem se há chaves suplentes ou não da igreja onde a família fica alojada. Se de facto acreditam que é assim que se cria envolvência com as personagens, como diria o cantor Tiago Bettencourt, «a mim passou-me ao lado».
Os discursos pouco genuínos de “Braga” podiam ser já motivo de um resultado menos positivo, mas a verdade é que, a acrescentar a esse pequeno grande detalhe, também o desenvolvimento de algumas das personagens principais ao longo da série foi desconexo e, em bom português, “poucachinho”.
Vamos falar sobre histórias paralelas incompletas e mal conseguidas? É que personagens como a Helena, que começa como uma dita “diferentona” que sabe dançar, é muito boa gente e quer ser livre, depressa termina a série envolvida no grande crime que acompanha “Braga” do início ao fim, sem se perceber como nem porquê. Sofre de um crime cuja história fica por resolver, envolve-se noutro cuja resolução é feita sem nunca lhe ser apontado o dedo no seu envolvimento – que, digamos, nenhuma pessoa boazinha faria o que ela fez, a não ser que tivesse um gigante distúrbio mental – e, do nada, desaparece de cena.
O foco foi totalmente posto, durante a série toda, no Carlitos – abençoado Carlitos –, no Padre António e na Dalila. Arriscamos dizer que, se não tivessem tentado criar tanta história paralela, “Braga” tinha, provavelmente, corrido melhor? Não só a personagem Helena, mas tudo o resto ficou meio perdido numa falta de conclusão para as suas aventuras e desventuras.
Luís Henrique Matos é, sem dúvida, a pérola desta “mixórdia de temáticas” confusa. O actor que dá vida ao Carlitos, uma das personagens principais da série que também é a grande vítima – ou uma das grandes vítimas, já que as pontas são tão soltas que se desfiam que nem cabelos espigados depois de três meses a banhos de sal -, é, sem dúvida, o que melhor prestação teve durante os oito episódios.
A ele, talvez se possa acrescentar Beatriz Domingues, no papel de Dalila, e Patrícia André, no papel de inspectora Maria, que lá tentaram pegar na amálgama de texto que lhes foi entregue e dar-lhe algum tipo de vida própria.
Já não falta tudo para que possamos chegar a uma conclusão – pelo menos a desta análise, já que a de “Braga” ficou aquém. Se o diálogo, o argumento, a entrega do elenco, tivessem sido perfeitos, talvez fossemos capazes de desculpar o que se segue.
Falemos de Ricardo, o ambicioso aspirante a jornalista. Se nos anos 2000 perdoávamos a inocência de Kelly Rowland a tentar enviar uma SMS num ficheiro Excel na canção “Dilemma” em colaboração com Nelly, em 2023 é difícil perdoar que pouco se saiba representar a realidade de um jornalista. Claro que não há regra sem excepções, mas, na mesma voracidade de Manuel Jesus, «diga um» jornalista que escreva artigos em bruto no programa de paginação. Certamente, não será a maioria, mas Ricardo é, claramente, diferente.
Como Ricardo é diferente, também é notoriamente a representação de um grande estereótipo. É que jornalistas há muitos, mas só os especiais é que têm aquele dom, como Ricardo, de perseguir a fama, a primeira página, as informações secretas da polícia… E mais, o apelido dele não é Felgueiras, fora se fosse.
Enfim, somam-se e multiplicam-se as personagens com pouco sumo, ou com sumo a mais, e dividem-se pelas aldeias de “Braga” como praga para uma realidade pouco verdadeira que a série criou. Tão pouco verdadeira que quase não dávamos pela história de amor de duas personagens principais que termina de forma tão perfeita que chega a incomodar.
E se tudo isto estivesse bem, perdoaríamos também uma pós-produção fraca, com cenas onde se nota claramente que as falas foram gravadas à parte, ora pela inserção de diálogos onde as personagens em cena não estão a abrir a boca, ora por faltar emoção, tremer de voz, oscilação de timbre em certas cenas mais duras de digerir. A digestão da cena, de facto, passou a ser difícil, mas por outras razões.
Não vamos embora sem antes deixar uma nota positiva de agradecimento a José M. Afonso, que criou uma banda sonora bonita, capaz de dar uma vida mais cheia à cidade onde todas estas peripécias acontecem. O genérico é especialmente gostoso de ouvir, mas também todos os outros momentos em que a música completa em pleno a cena que estamos a ver, dos headsets de Helena, ao casório final.
Este processo de dissecação e autópsia de “Braga” chega ao fim e a verdade é que se perdem a conta aos detalhes que no bolo completo acabaram por tirar por inteiro o brilho a uma série que tinha todo o potencial para ser uma pérola da televisão portuguesa.
Fica a boa prestação de alguns, fica o intuito de trazer para a mesa de debate tópicos importantes e complexos, fica a representatividade e a música. Infelizmente, fica também tudo o que devia ter corrido bem e não correu e assim se avista “Braga” por um canudo.