Muitas histórias há numa história só.

O audiovisual é mais uma forma de contar histórias. Não a única, nem sequer a mais importante, talvez, mas é seguramente uma das formas, e por isso tem, também, a sua função na nossa sociedade.

  • Post author:Beatriz GodinhoBeatriz Godinho
  • Reading time:12 mins leitura

Beatriz Godinho - Actriz em "Cuba Libre" e "O Clube"

You are currently viewing Muitas histórias há numa história só.
Beatriz Godinho | FILIPE FERREIRA

Chamo-me Beatriz e, desde que me lembro, sou apaixonada por histórias.

Sou actriz há 13 anos e, de tempos a tempos, lá me pergunto porque continuo a desejar e a escolher sê-lo.

E sempre que estes questionamentos me visitam e insistem em retirar-me horas de sono, lá vou eu rever o “Why I do Theatre” da Patsy Rodenburg.

«It’s very easy to forget that actors are a very important part of society», diz ela.[i]

Mas porquê?, pergunto-me eu, e lá embarco na procura de razões que legitimem esta minha obsessão de continuar a querer ser um veículo de contar histórias.

As histórias não são só entretenimento, são uma parte fundamental do ser humano. Temos vindo a contar e a ouvir histórias desde há milhares de anos, partilhando-as oralmente ainda antes da invenção da escrita.

Aliás, acredita-se até que as cenas dramáticas retratadas nas pinturas rupestres de locais como Chauvet e Lascaux (França), datadas de há cerca 30,000 anos, seriam provavelmente acompanhadas de narração oral.[ii]

Inúmeros psicólogos e teóricos assumem a importância central que as histórias têm na vida do ser humano, desde sempre.

As histórias são uma forma de jogo cognitivo que aguça as nossas mentes, que nos permite imaginar diferentes possibilidades de nos situarmos no mundo.

Os humanos têm uma inclinação para encontrar narrativas onde elas parecem não existir e, dessa forma, dar sentido às suas vidas.

Usamos as histórias como uma ferramenta de resolução de problemas existenciais – construímos narrativas internas para reconhecer padrões no meio do caos, para encontrar sentido na angústia da aleatoriedade.

Todos nós partilhamos histórias como forma de explicarmos as coisas aos outros e a nós próprios.

Evidência cientifica[iii] mostra que ler ou ouvir histórias activa várias áreas do córtex conhecidas por estarem envolvidas no processamento de experiências emocionais e sociais.

Descobriu-se ainda que a leitura de ficção aumenta significativamente a empatia em relação aos outros, especialmente pessoas que os leitores inicialmente sentiam como “estranhos” (por exemplo, estrangeiros, pessoas de culturas, cor de pele ou religião diferentes).[iv]

As histórias permitem-nos investigar a consciência de outrem e conhecer a sua forma de pensar e de sentir. Isto pode, por um lado, confirmar os nossos próprios ideais e crenças, porque nos  reconhecemos nas experiências do outro; mas, por outro lado, pode também desafiar a nossa perspectiva e/ou colocá-la em causa. Essa novidade permite-nos então uma visão mais ampla, aprofundada e sensível de realidades que até então desconhecíamos.

As histórias são portanto um excelente veículo de conexão entre seres humanos, podendo constituir uma ferramenta de extrema utilidade na criação e manutenção da sociedade.

Acredita-se ainda que as histórias possam ter tido um papel determinante na sobrevivência da nossa espécie.

Os seres humanos pensam através de narrativas e não através de factos, números ou equações. Partilhar informações essenciais à nossa sobrevivência através de uma narrativa que mistura factos e emoções, aumenta a nossa capacidade de reter e relembrar essa informação vital.

(Jennifer Aaker, professora de marketing da Stanford Graduate School of Business, diz que as pessoas tendem a reter informações até mais 22 vezes quando são inseridas em narrativas em vez da mera partilha de factos.)[v]

Quer compartilhar uma história envolva transmitir informações importantes, criar relações sociais, construir experiências comunitárias ou gerar um aconchego existencial, a função mais importante de uma história é lembrar-nos de que não estamos sozinhos no mundo.

«The show is really for anyone who has been struggling between who they want to be and who they actually are. The people who say, ‘I feel less alone because I watched what you’re making’», confessou Ramy Youssef quando questionado sobre qual o público-alvo da série “Ramy”, que criou e protagonizou.[vi]

O ritual de contar histórias, o acto de uma pessoa compartilhar uma história com um ouvinte ou espectador, constitui uma ligação humana muito básica que nos lembra de como fazemos parte de algo muito maior do que nós mesmos.

Quando me sinto incapaz de entender as motivações de outra pessoa, procuro ouvir a história dela – ou as histórias de pessoas como ela – e isso ajuda-me sempre a fazer as pazes com o mundo. Tantas vezes comigo mesma. Aconselho vivamente.

E por isso desejo e escolho continuar a ser actriz.

Porque as histórias são a melhor maneira que conheço de me conectar com outras pessoas. Concentro a minha vida profissional na procura desses caminhos de ligação com outro, na crença de que uma conexão vulnerável, presente, honesta e cada vez mais autêntica entre as pessoas torna o mundo num sítio melhor de se habitar.

Tento abraçar o desafio de atrair as pessoas para uma reflexão conjunta, convidá-las a fazer parte da história que me proponho a contar, que me proponho a viver. Acredito que os ouvintes/espectadores têm um papel a desempenhar nesta experiência – não são elementos passivos nesta equação; estamos juntos a tentar criar e imaginar possibilidades para o mundo.

O audiovisual é mais uma forma de contar histórias. Não a única, nem sequer a mais importante, talvez, mas é seguramente uma das formas, e por isso tem, também, a sua função na nossa sociedade.

Não estou certa de qual é o seu papel concreto – não gosto de pensar que o audiovisual possa mudar o mundo por si só, mas acredito que pode ser mais uma ferramenta capaz de despoletar introspecção, permitindo-nos colocar questões e/ou oferecer-nos pontos de referência para certas coisas. E que desta forma, acabe por contribuir, ainda que indirectamente, para a construção de possibilidades de futuro.

Por tudo isto, celebro a proliferação de plataformas repletas de uma maior variedade de conteúdo audiovisual – esta actual tendência universal facilita-nos o acesso a histórias de diferentes culturas, realidades, pontos de vista…Histórias, tantas vezes, profundamente distintas das nossas; outras tantas vezes tão surpreendentemente próximas de nós.

Se há histórias neste crescente universo de possibilidades que nos servem melhor do que outras? Claro. Mas, ainda assim, prefiro que se contem histórias a mais do que a menos. A abundância traz os seus desafios, sabemos; desafios existem em qualquer realidade. Contudo, neste caso, prefiro lidar com os desafios dessa abundância do que com os desafios da escassez.

No limite, cabe a cada um responsabilizar-se pela direcção na qual dirige a sua atenção – considero importante que se procurem referências, que se encontrem influências, que se estabeleçam critérios, mas raramente de forma universal. Tenho consciência dos perigos da liberdade de expressão e do livre arbítrio, sim, no entanto, não lhes conheço melhor alternativa ainda.

«We tell people to follow their dreams, but you can only dream of what you can imagine, and, depending on where you come from, your imagination can be quite limited.»[vii]

Lembrei-me duma história… Foi um padre que, na minha infância, me ensinou a acreditar que o conhecimento é poder e liberdade. Numa das nossas muitas conversas em que eu o metralhava efusivamente com as minhas dúvidas e inquietações relativamente à legitimidade da sua fé, louvei-lhe a paciência de continuar a ouvir-me e, humildemente, tentar oferecer-me as respostas que eu tanto procurava. Nunca se negou a discutir ideias comigo, pelo contrário, interessava-se pelo que eu tinha a oferecer nessas discussões. Perguntei-lhe porquê, ao que me respondeu algo que tento parafrasear: «Nunca tenhas medo do conhecimento, Beatriz. Se o novo conhecimento com que te deparas na vida abalar a tua fé e ideias, então é porque elas já não te servem. Se por outro lado, confirmarem o caminho no qual já te encontras, então a tua fé e ideias ficarão ainda mais fortes. De qualquer das formas, ficarás sempre a ganhar.» E por isso confio no livre arbítrio, no poder de cada um perceber as histórias que melhor lhe servem a dado momento – não as que lhe são mais confortáveis, mas as que lhe são mais úteis, que muitas vezes são exactamente aquelas que nos abalam. Nunca sabemos exactamente que histórias podem servir a quem.

O audiovisual português tem feito por acompanhar, a custo, esta actual tendência universal para contar mais histórias. Temos muitas e boas histórias para contar. Queremos contá-las além fronteiras também.

Em conversas com colegas que tiveram a oportunidade de integrar projectos internacionais, apercebo-me que pouco varia no que ao trabalho em si diz respeito ou à qualidade dos trabalhadores dos diferentes sectores desta actividade. A grande diferença reside, sim, nas condições oferecidas e meios disponíveis.

Por cá, o apelo dos profissionais de contar histórias é antigo e desde sempre pertinente. É urgente criarmos condições para que nos seja possível contribuir com dignidade na nossa função de contar histórias. Parece-me também que encontrar os caminhos para lá chegarmos é mais fácil quando carregamos a responsabilidade e certeza de que queremos lá chegar. O que me preocupa, em Portugal, é não ter a certeza de que a Cultura é vista como a prioridade essencial que verdadeiramente é. A Cultura é um direito inegociável e uma responsabilidade de todos.

Somos muito mais histórias do que números, parece-me sempre importante lembrar. Multiplicar histórias é expandir as possibilidades do nosso mundo e de cada um de nós.

Eu sei que este texto pode parecer uma defesa alargada da legitimidade da profissão do actor e de todos os profissionais que dedicam a sua vida a contar histórias, e talvez seja. É certamente uma celebração de todos os maravilhosos profissionais incansáveis com quem tive o prazer de me cruzar e admirar.

«(…) I think, playwrights and actors…we need them now more than any other time», diz a Patsy Rodenburg[viii] e eu continuo a concordar com ela.


[i] RODENBURG, Patsy, Why I do Theatre (2009), https://youtu.be/L9jjhGq8pMM, visitado em 28 de Fevereiro de 2023.

[ii] ROBSON, David, Our fiction addiction: Why humans need stories, BBC Culture, https://www.bbc.com/culture/article/20180503-our-fiction-addiction-why-humans-need-stories, visitado em 25 de Fevereiro de 2023.

[iii] ROBSON, David, Ethics and moralityHeroes and villains, The British Psychological Society, https://www.bps.org.uk/psychologist/heroes-and-villains, visitado em 25 de Fevereiro de 2023.

[iv] DELISTRATY, Cody C., The Psychological Comforts of Storytelling, The Atlantic, https://www.theatlantic.com/health/archive/2014/11/the-psychological-comforts-of-storytelling/381964/, visitado em 25 de Fevereiro de 2023.

[v] Ibidem.

[vi] YOUSSEF, Ramy, Ramy Youssef on his personal journey with Islam, Esquire Middle East, https://www.esquireme.com/culture/interviews/52206-ramy-youssef-season-3-ramadan-islam, visitado em 26 de Fevereiro de 2023.

[vii] NOAH, Trevor, Born a Crime, United Kingdom: John Murray Publishers, 2016, pág. 73.

[viii] RODENBURG, Patsy, Why I do Theatre (2009), https://youtu.be/L9jjhGq8pMM, visitado em 28 de Fevereiro de 2023.

[ix] Título a partir do verso Muitas coisas há numa coisa só de Bertolt Brecht em Os horácios e os curiácios, que sei de cor desde o segundo ano da minha licenciatura em Teatro na Escola Superior de Teatro e Cinema, Lisboa.