Tudo o que precisas de saber sobre a greve dos argumentistas de 2023

"Yellowjackets", "Cobra Kai" e "Stranger Things" estão entre as séries afectadas pelo impacto da greve levada a cabo pela WGA. Em Portugal, sentem-se as reivindicações da greve de forma semelhante.

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WGA em greve, em Novembro de 2007 | JENGOD

25/09/2023: A Writers Guild of America e a Alliance of Motion Picture and Television Producers chegaram, no passado dia 24 de Setembro de 2023, a uma tentativa de acordo que porá fim à greve dos argumentistas, sujeito à redacção da documentação contratual oficial. Os detalhes afectos às novas negociações podem ser consultados no mais recente artigo relativo ao novo contrato entre os argumentistas e os estúdios de produção.

No passado dia 2 de Maio teve início a greve dos argumentistas nos Estados Unidos da América. Resultante de uma falha de negociações entre a Writers Guild of America (WGA) e a Alliance of Motion Picture and Television Producers (AMPTP), a greve dos argumentistas – como comummente é conhecida – está activa há uma semana, com algumas repercussões para as produções televisivas e plataformas.

De acordo com o site da WGA, a greve surge após tentativas sem sucesso de elaborar um novo contrato entre ambas as entidades que reflectisse “o valor da contribuição dos membros para o sucesso das empresas” e que incluísse “protecção para a sobrevivência da profissão de argumentista de forma sustentável”.

A WGA, a AMPTP e os trâmites da greve dos argumentistas

A WGA, ou Writers Guild of America, é uma união laboral que representa os milhares de criadores responsáveis pela criação de conteúdo audiovisual manuscrito. Fundada em 1933, esta associação responsabiliza-se pela negociação e administração dos contratos que protegem os direitos económicos e criativos dos seus membros.

Até então, a WGA tem estado envolvida em vários programas que englobam os interesses dos seus membros, e está “activa em política pública e matérias legislativas a nível local, nacional e internacional”, de acordo com o site da própria WGA. Nessa envolvência, surgem anualmente as negociações com a entidade AMPTP que visam estabelecer as formas de trabalho, contratualmente, entre os argumentistas e os estúdios de produção envolvidos.

A AMPTP, ou Alliance of Motion Picture and Television Producers, é então a responsável pela negociação de contratos na indústria audiovisual como representante dos grandes estúdios de produção nos Estados Unidos da América. Como parte integrante desta aliança, constam alguns dos principais estúdios de produção como Netflix, Amazon, Apple, Disney, Discovery-Warner, NBC Universal, Paramount e Sony.

As negociações para os contratos entre ambas estas entidades iniciaram-se largos meses antes da data de expiração do até então actual contrato, que terminou no dia 1 de Maio de 2023. Para as negociações, a WGA submeteu algumas propostas que foram avaliadas pela AMPTP e da qual não surgiram respostas e contra-propostas favoráveis para a WGA.

Desde um formato que garantisse segurança no trabalho, aumentos salariais, compensações meritocráticas até planos de pensão e saúde ou a inserção da inteligência artificial (i.e. ChatGPT), as soluções submetidas pela WGA foram rejeitadas pela AMPTP ou submetidas a contra-propostas não favoráveis às condições pelas quais a WGA lutou e continua a lutar.

Por não se ter chegado a acordo, no dia 2 de Maio, o dia seguinte ao término do contrato em vigor, a WGA entrou em greve.

Desta greve dos argumentistas fazem parte normas inquebráveis que todos os argumentistas associados e impactados terão de fazer cumprir. A pausa na produção de guiões é a mais gritante, sendo que tem um impacto directo sobre séries de televisão e/ou programas de entretenimento altamente dependentes da submissão de guiões.

Para facilitar a compreensão, seguem em detalhe algumas das mais importantes acções tomadas pelos membros da WGA durante a greve:

  • É proibido efectuar serviços de escrita ou entrega de escrita às empresas visadas;
  • É proibido dar continuidade, efectuar alterações ou revisões a um projecto escrito a decorrer;
  • É proibido submeter novo material literário para as empresas visadas;
  • É proibido negociar ou debater projectos a decorrer ou futuros com as empresas visadas ou estar presente em reuniões que concernam estes projectos;
  • É proibido negociar venda de material literário com qualquer empresa visada;
  • As empresas que possuam qualquer material literário em esboço devem devolvê-lo aos respectivos criadores.

Apesar de mais normas estarem em causa no despacho que descreve o início da greve dos argumentistas, as principais acções tomadas têm impacto directo sobre algumas produções em curso.

Séries/produções em pausa e o impacto da greve

O ano de 2023 não é o primeiro em que se viu uma greve de argumentistas acontecer por falta de acordo entre as duas entidades envolvidas.

Uma greve desta natureza tem impactos imediatos na televisão como a conhecemos, gerando repercussões nas produções que podem incluir séries de televisão com temporadas reduzidas, cancelamentos, adiamento de datas de lançamento de novas séries e/ou temporadas, etc. Do ponto de vista económico e social, por exemplo, pode gerar audiências mais baixas para os canais e, eventualmente, conduzir a uma elevada taxa de desemprego no mundo audiovisual afectado pelas paragens forçadas.

Este impacto foi visível há 15 anos, entre Novembro de 2007 e Janeiro de 2008, quando a WGA entrou em processo semelhante de greve, acabando por impactar algumas das séries mais acarinhadas pelo público na altura, entre as quais “Lost”, “Heroes”, “Criminal Minds”, “Bones”, “One Tree Hill”, entre outras. Há altura, todas as produções mencionadas sofreram com temporadas encurtadas devido à impossibilidade de produzir episódios que ainda não tinham argumento desenvolvido. A mais longa greve da WGA decorreu largos anos antes, em 1988, tendo, naturalmente, tido impacto semelhante nas produções televisivas em curso, bem como nos programas de entretenimento.

De acordo com o site norte-americano Variety, existem algumas séries de televisão, em 2023, que irão sofrer impacto directo com a greve dos argumentistas.

Na lista de séries de televisão não iniciadas estão produções como a produção da série “Daredevil: Born Again”, 3ª temporada de “Abbott Elementary”, a 6ª temporada de “Cobra Kai”, a 8ª temporada de “Big Mouth” e a 3ª temporada de “Yellowjackets”, entre outras.

Acrescentando às produções directamente afectadas, recentemente, os irmãos Duffer, responsáveis pelo êxito “Stranger Things”, declararam na sua página de Twitter que, apesar de os guiões já estarem terminados, não irão entrar em filmagens para a 5ª temporada da série enquanto a WGA e a AMPTP não chegarem a acordo, impactando assim a possível data de estreia da aguardada produção.

Série Stranger Things com filmagens atrasadas devido à greve dos argumentistas
“Stranger Things” | NETFLIX

Já no caso da 2ª temporada de “Rings of Power”, apesar de prosseguir com as filmagens, irá fazê-lo sem dois dos produtores executivos responsáveis que se encontram solidários com a greve – J.D. Payne e Patrick McKay. Também a 2ª temporada de “House of the Dragon” irá prosseguir com filmagens, mas o showrunner Ryan Condal apenas tem autorização para exercer a sua função de produtor executivo. “Severance”, da AppleTV+, é a mais recente série impactada com a greve dos argumentistas, que parou a produção da sua 2ª temporada no início desta semana.

Mais recentemente, o produtor da série “Andor” do Universo Star Wars Tony Gilroy confirmou também que, apesar dos guiões já estarem escritos para a 2ª temporada de “Andor”, ele não irá estar activamente como produtor executivo da série até a greve terminar. Apesar de não estar confirmada a paragem das gravações, o afastamento provisório de Gilroy presume que atrasos nos timings da série irão acontecer.

Mais de um mês após o início da greve, o numero de séries impactadas pela paragem dos argumentistas continua a crescer. De uma nova lista de produções em pausa, destacam-se a paragem das séries “The Penguin” e “Zero Day” com Robert DeNiro no papel principal.

Ao dia 1 de Agosto, terça-feira, a WGA anunciou que iria finalmente reunir com a AMPTP para retomar negociações no dia 4 de Agosto. De acordo com o site Deadline, foi a própria WGA que informou os seus membros que “A AMPTP, através da porta-voz Carol Lombardini, entrou em contacto com a WGA e requisitou uma reunião esta sexta-feira para negociações”.

A greve dos argumentistas, que está activa desde o dia 2 de Maio, aproxima-se dos seus 100 dias e, apesar desta reunião entre ambas entidades não significar que será atingido um acordo final, é um primeiro passo para tentar dar término a uma das duas greves que têm tomado conta de Hollywood.

As repercussões na Europa e em Portugal

Apesar da actual greve dos argumentistas estar a decorrer nos Estados Unidos da América, pela Europa e por Portugal, as associações equivalentes FSE (Federação de Argumentistas da Europa) e APAD (Associação Portuguesa de Argumentistas e Dramaturgos) mostraram-se solidárias com o movimento dos seus colegas na WGA.

No dia 21 de Março, a FSE publicou na sua página de Instagram uma imagem de solidariedade para com o contrato da WGA de 2023, a origem da greve dos argumentistas, acrescentando as palavras da presidente da FSE Carolin Otto, que declarou, «em nome de todas as associações europeias de argumentistas», estar «inteiramente solidária com o comité de negociações do WGA Contract 2023 para novo acordo com a AMPTP».

Já em Portugal, a APAD, na passada sexta-feira, publicou um manifesto de solidariedade para com a WGA, juntando-se à FSE no apoio aos colegas da WGA e, na sequência dessa publicação, o TV Contraluz contactou a APAD para compreender de que forma o impacto das reivindicações da WGA nos Estados Unidos da América tem afectações e/ou semelhanças na realidade audiovisual de Portugal.

Apesar de existir uma diferença significativa no audiovisual português e no audiovisual proveniente dos Estados Unidos da América, a direcção da APAD confessa, em declarações ao TV Contraluz, que “muitas das reivindicações da WGA encontram eco deste lado do Atlântico”.

A principal origem destas reivindicações prende-se principalmente com o crescimento exponencial do consumo e qualidade das séries de televisão, que não se tem reflectido na forma como as remunerações e condições laborais dos argumentistas é tida em conta.

Questões como “uma percentagem dos lucros que seja mais proporcional ao sucesso da série ou filme que tenham desenvolvido ou escrito” são pontos fulcrais que estão em destaque nesta greve que decorre nos Estados Unidos da América e, confirma a APAD, é sentimento reflectido nos argumentistas portugueses.

De forma pouco susceptível a dúvidas, a direcção da APAD confirma que “o apoio da APAD à WGA é assim um gestor de solidariedade por parte de quem compreende e sente os mesmos problemas que os nossos colegas americanos”.

Se em território americano é a demanda que dita as regras, em Portugal é o tempo, ou a sua escassez. Quando confrontados com a falta de tempo disponível para desenvolver os produtos em que trabalham, com condicionantes de orçamento incluídas também, a consequência é “um trabalho pouco mecânico que, com as condições que normalmente se tem, acaba por ser feito de forma mecânica”, refere a APAD. Nomeiam a precariedade e a remuneração baixa, bem como a necessidade de acumular trabalho como um dos maiores desafios da indústria em que se encontram.

Os timings, nomeadamente no que toca à aprovação de projectos, parecem ser tema de conversa constante, já que a direcção da Associação Portuguesa de Argumentistas e Dramaturgos aponta como sendo “algo que seria mais simples de resolver”, para permitir que “as ideias sejam melhor trabalhadas e desenvolvidas num ambiente com menor stress“.

Entre prazos, condições laborais (como o formato recibos-verdes), dependência exacerbada de apoios geridos pelo estado, ou falta de verbas, estas são as questões que levam a APAD a sentir a solidariedade para com os colegas da WGA que lutam, ainda, por melhores condições contratuais. A associação nacional refere ainda que “tem mantido sempre um diálogo constante com os diferentes sectores, desde o Ministério da Cultura, ao ICA, a associações de produtores, realizadores e outras”, por forma a salvaguardar as condições de criação dos profissionais desta indústria.

Para além das condições físicas, emocionais e laborais que tanto os membros da WGA como a direcção da APAD referem que fazem parte da luta constante pelo bem-estar da profissão de argumentista, ambas as entidades, e também a Federação de Argumentistas Europeia (FSE), salientam ainda uma das grandes questões do momento: a inserção da inteligência artificial e a forma como pode ou não ameaçar a profissão de argumentista.

“Quando se fala de I.A. neste contexto, fala-se sobretudo de programas de ‘escrita’”, elucida a APAD, acrescentando ainda que “produzem resultados que são pouco mais que banalidades e mesclas de clichés ou tentativas de juntar géneros de sucesso baseados em fórmulas repetitivas e populares, ou, na melhor das hipóteses, premissas absurdas”.

A grande preocupação é que a proliferação da inteligência artificial num formato semelhante ao que se encontra em ferramentas como o ChatGPT possa, de alguma forma, ditar o pensamento de quem financia e encomenda conteúdos e que o futuro se construa de “decisões baseadas em estatísticas, em vez da criatividade e originalidade da voz pessoal e única de um autor”.

Ao dia 14 de Junho de 2023, a Associação Portuguesa de Argumentistas e Dramaturgos juntou-se à FSE, à International Association of Writers Guilds e à UNI União Global, entre outros para o movimento “Screenwriters Everywhere” que visa juntar as várias organizações do mundo de argumentistas num “dia de solidariedade e acção global”, de acordo com o comunicado de imprensa recentemente enviado pela APAD. O mesmo comunicado revela que durante o dia “estão previstas acções em 35 países, que vão desde piquetes nos escritórios locais dos membros da Alliance of Motion Picture and Television Producers (AMPTP) e manifestações, a debates entre os membros e campanhas nas redes sociais.”

Vários representantes destas organizações vieram a público manifestar o seu apoio para com a WGA na greve dos argumentistas que se iniciou no dia 2 de Maio, de entre os quais Thomas McLaughlin, presidente da IAWG, que afirma que «a vitória obtida na América será uma vitória para os argumentistas de todo o mundo.»

Artigo actualizado a 09/05/2023, às 12h18, com informação sobre a produção da série “Severance”.
Artigo actualizado a 11/05/2023, às 10h13, com informação sobre a produção das séries “Andor” e “Daredevil: Born Again”
Artigo actualizado a 14/06/2023, às 16h56, com informação sobre o dia de manifestação intitulado “Screenwriters Everywhere”
Artigo actualizado a 15/06/2023, às 08h51, com informação sobre a produção das séries “The Penguin” e “Zero Day”
Artigo actualizado a 02/08/2023, às 10h45, com informação sobre uma nova reunião entre a WGA e a AMPTP.
Artigo actualizado a 26/09/2023, às 00h07, com informação sobre um “acordo de princípios” entre a WGA e a AMPTP