A recente discussão sobre se “ser actor de método” justifica todo o tipo de acções, inclusive comportamentos tóxicos, acabou por não ser tão mediática como achei que poderia. No entanto, despertou a minha curiosidade. A meu ver é um tópico que origina de uma conversação mais ampla: se a busca da criação de um objecto artístico justifica todo o tipo de acções dos intervenientes – não só actores, claro.
Quando recebi o convite para escrever algo sobre o meio audiovisual pensei que poderia ser este o meu tópico. Porque não?
Sempre senti que de pouco valem as ferramentas, a inteligência, o requinte e o talento se formos uns merdas. Como pessoas. De uma forma geral. Em tudo.
A minha cabeça divaga, constantemente, com possibilidades…
Escolho uma memória em particular das que flutuam na minha cabeça mais ou menos nas nuvens, memória essa também ela, mais ou menos, sobre o audiovisual.
Vagamente pode ter o tom de “spread the love, kinda thing”, mas se fosse falado e não escrito sentiriam o meu tom de narrador género o senhor do National Geographic que consumia gulosamente na sala com o meu avô.
Lembro-me vagamente de ir a um casting que o meu mano Giovanni Lourenço partilhou comigo e como esse dia foi um momento.
Eramos miúdos.
Fazíamos teatro e tentávamos furar num meio difícil – cada um com a sua luta – cúmplices num objectivo comum. Criar. Um casting aqui, uma roupa acolá, um jantar ali, uma piada parva e gargalhadas. Tínhamos o nosso estilo – importante – e sentíamo-nos bem.
Quando era preciso subir a um palco não existiam medos. Crianças não sentem bloqueios na hora de criar, mais ainda quando temos um amigo ao lado.
O casting era para um filme algures em África nos tempos da Guerra Colonial, suponho.
Faz muito tempo e a memória perde-se nos detalhes – esquecemo-nos deles, mas nunca de como as pessoas nos fizeram sentir.
Existiam vários actores e actrizes negros na sala, e eu. Eu que não tinha sido convidado para o casting, eu com quem não contavam para o casting, eu que tinha ido atrás do Giovanni porque queria mostrar trabalho (e conseguir trabalho).
Esperei, pacientemente na sala, depois de à entrada dizer que queria fazer o casting. Pouco a pouco todos tiveram a sua vez – sobrando eu.
Como calculam, neste momento não existiam papéis para mim naquele projecto. Eu não calculava e estava tão nervoso por querer tanto que nem me ocorreu que existissem diferenciações para os papéis como “a cor da pele”. Sure, em tópicos concretos e personagens concretas tudo bem, o que seria reinterpretarmos os navios portugueses a iniciarem as rotas de escravos sendo os escravos amontoados no porão todos brancos? Seria estranho. Na volta, talvez fosse interessante criar essa imagem para algumas pessoas a terem descrita nos olhos. Sem querer divagar, porque este assunto é outro assunto e no que toca ao racismo eu tenho a posição simples de querer ouvir e aprender, porque pouco ou nada sei dele, o que queria de facto sublinhar, e que aos meus olhos em miúdo (hoje em dia, igual, mas com mais maturidade no debate) um personagem poderia ser qualquer coisa e, portanto, qualquer pessoa. Realmente, para aquele filme não. E está tudo certo, também faz sentido.
Mas o realizador teve a simpatia de me fazer a audição, mesmo quando parecia ocupado, mesmo quando sabia que não poderia escolher-me, ou talvez pensando qualquer outra coisa. A mim pareceu-me, depois de me cair a ficha, simpatia. Mas tudo bem.
(Senti-me considerado. Era fácil ter visto o miúdo na sala e mandá-lo ir embora, ou mesmo no limite, quando sobrava somente eu, terem-me dito que não devia estar ali, ou algo assim.)
Já em frente à câmara perguntou-me o nome, o que fazia (como se não fosse óbvio), formação, se ficaria intimidado se tivesse que representar com o Nicolau Breyner… (O Senhor do “Senhor Contente e do Senhor Feliz”) *1
Qual Leonardo Di Caprio na audição do “This Boy’s Life” onde, reza a lenda, que para se destacar dos outros actores quis mostrar que não tinha medo e fez toda a audição aos gritos para com o De Niro em completo overacting, respondo com a minha maior tranquilidade possível:
– “Não. O Nicolau ficaria intimidado a representar comigo.” – cheeky smile.
Em perspectiva, tudo errado (Claro!). Tiro ao lado, cala-te Luís Filipe.
Um miúdo (ponto final) que somente tinha o “Diário de Sofia” como currículo (ponto e vírgula) além de Teatro de Rua, performances e teatro amador – entre todos os outros motivos pelo qual esta foi uma resposta errada (ponto de exclamação), em busca de trabalho a dizer isto…
Mais que mais reparo que um senhor forte que estava por detrás dos ecrãs e, entretanto, levantara-se, era o Sr. Nicolau Breyner.
Estupendo!
Nem sorridentemente nem com ar de julgamento, o próprio introduziu as circunstâncias da cena que iria fazer com o actor que daria contracena de improviso, uma ou outra palavra de aconselhamento, uma ou outra palavra de encorajamento entre takes, e pronto.
Fiz a audição. De improviso. Uma cena dramática onde falhei redondamente. Pisava uma mina em fuga e tinha que convencer o meu amigo a deixar-me ir que o inimigo aproximava-se. Falhei redondamente e lembro-me bem, não porque me recorde do que fiz, mas porque não nos esquecemos de como nos sentimos.
Portanto, sentindo-me miseravelmente – do céu ao inferno em dois takes – o Sr. Nicolau deu-me um aperto de mão que me fez sentir reconfortado saindo de seguida, o realizador também agradecendo eu ter “aparecido” e eu, derrotado, saí igualmente.
Pormenores.
Para o Luís Filipe de 18 anos sentir que “fazia parte”, porque o Sr. Nicolau deu-me um aperto de mão, e a nível pessoal sem ser julgado apesar da tolice, significou esperança envolta num sentimento de desapontamento temporário.
O Giovanni, entretanto, não esperou por mim, devia ter coisas para fazer e no final das contas eu tinha passado várias horas ali à espera e ele aguentou o tempo que pôde.
Obrigado, Nico.
Senti que eras um senhor, com enorme bagagem, mas sem ter perdido o cuidado, e nunca nos esquecemos de como nos fizeram sentir.
Vou procurar dar apertos de mão assim, sem sorriso e sem julgamento, mas, se puder, coloco um sorriso.
(Este texto foi redigido numa época onde foi anunciado 2% para a Cultura. O autor não esconde a sua estupefacção, fora de época eleitoral.)
* * *
Acabo o texto e a minha cabeça vagueia novamente mais ou menos, em ideias mais ou menos. Um certo sentimento de falhanço, semelhante à maioria dos dias mesmo quando me sinto preparado para abordar um trabalho. Existiam tantos outros tópicos mais pertinentes:
– A glorificação do artista “excêntrico” tal como se glorificou o artista na miséria de Montparnasse durante anos, a ideia romantizada que tem de se sofrer e experienciar a miséria porque isso é que é ser artista e viver intensamente as coisas ampliada a outros pontos, em Portugal apelidei de “teatro de culto” – ou se faz, ou não se faz, ou se pertence ou não se pertence. Temos que…
Iria rondar sobre se não seria falta de coragem para tomar uma posição forte para com aquele/a colega tóxico, aquele/a que damos por nós a dizer quando acontece over and over again o mesmo comportamento ou palavra tóxica de sempre – “Oh, e o não sei quantos/as… Já sabes”. E deixamos passar, como se fosse normal porque é o normal naquela pessoa.
(Se o normal fosse bater na mulher/marido, pronto, ele/a no fundo tem bom fundo, a intenção é boa… A meu ver comparação justa – como distinguimos agressões?)
* * *
– Ou sobre escolas com mestres-professores que andam, entre outros comportamentos que aqui em Londres dariam um punhado de investigações, de turma em turma a espicaçar o trabalho dos alunos-actores. “Olha que o A já sabe o texto. Olha que o B vai mesmo muito bem. Hoje és óptimo. Amanhã digo que não percebo como é que podes querer ser actor. O A vai ser melhor que tu” e que, por consequência, propagam esse “método” às gerações seguintes de criadores/actores/directores, porque é a forma de motivar (?), ou explorar o conceito de “leões em arena”. E elas não sabem fazer de forma diferente e falta-lhes a coragem de o procurarem fazer.
* * *
Ou… Conversas de bastidores.
– A competição… Grandes cavalos!
Esta seria interessante, porque, apesar de ter tido o meu break recentemente, são 15 anos de bastidores, quieto a trabalhar e a ouvir.
Pesados, francamente fora do meu alcance.
Ou porque não quero, desisti.
Poderia igualmente ter seguido em oposição – um truque que resulta por vezes na interpretação de um texto.
Exemplo: sorrir numa cena dramática, chorar numa cena feliz. Quebra a associação natural e imediata de “como deveria ser” do espectador e, portanto, aos olhos, quiçá, torna-se mais interessante.
* * *
– Falar de momentos positivos. Aqui sim, spread the love, kinda thing. O mundo está cheio de conquistadores e guerreiros, porque não equilibrar a balança?
Momentos onde existiu aos meus olhos luz, mesmo que por coisas pequenas mas que ficaram, tal como um aperto de mão:
– A audição que fiz um dia para o Sérgio Graciano para a série “A Criação” – na altura uma surpresa – e de como ele me deu todo o seu tempo antes da audição para falar comigo, agradecer-me por estar ali, saber um pouco de mim, explicar-me o que queria, e igualmente no final, acompanhando-me enquanto saía – de como foi uma experiência positiva para mim, e inesperada – talvez por não ser, na altura, comum na minha experiência esse tacto.
– Poderia falar sobre como quando procurava dar visibilidade ao meu trabalho concorri a um talent show para actores apresentado pelo Pedro Górgia que estava em “modo piloto” na TVI e, nervosíssimo, como se toda a minha vida dependesse daquele momento, a tranquilidade do Tiago Aldeia e da Inês Curado que davam a contracena ajudaram-me passando para a “fase seguinte” quando por momentos pensava “Oh meu deus, vou falhar redondamente e isto fica gravado e vai para o ar, é o fim.” E de como dei gargalhadas no caminho para casa a pensar em tudo isso. *2
* * *
– Ou de como um dia fui a um casting para os “Morangos com Açúcar” e uma mulher chamada Catarina Siqueira levantou-se e na apresentação para a câmara confessa que veio por si, sem agência e sem “convite” (os castings, aquele em particular, era fechado) e fez uma audição que ainda hoje guardo na memória de como fui para casa nesse dia gabando-lhe o talento, garra e coragem, e que queria ser assim.
* * *
– Poderia falar sobre vários momentos que podem parecer corriqueiros, quiçá rotina, para os intervenientes mencionados ou para outros que eventualmente leiam – e se assim for, ainda bem – onde estes detalhes fizeram com que nunca me esquecesse de como me senti, de como me fizeram pensar, de como me fizeram acreditar que em momentos delicados devia estar atento ao pormenor necessário e em como normalmente ele encontra-se em algo simples e humano – em conversa com o Pete Travis ele dizia o mesmo, aos aspirantes a realizadores que o ouviam. “Get the actors to trust you and they will do anything for you.” “Lovely, one more.” – que é como quem diz, “sê um ser humano primeiro e os resultados virão”.
– Pareceu-me um pouco moralista e facilmente seria conotado de hipócrita mais à frente quando inevitavelmente “falhar” num momento de pressão ou eventualmente a minha humanidade falhar – tipo Christian Bale nas filmagens do “Exterminador”. Isto da internet já não nos deixa ter direito ao esquecimento e um dia eu posso querer apresentar os prémios Sophia, não convém ser hipócrita senão sou cancelado. *3
* * *
Aqui lembrei-me igualmente que poderia querer falar sobre isto do Cancel Culture… Uff.
Vou acabar por não falar de nada… Já me conheço.
Pego no meu livro e lido novamente com o sentimento de fracasso – quanto gostaria de ser melhor, na escrita, nas ideias, na representação, na defesa de valores maiores. Há pessoas que nascem para ser observadoras, não pedirem nada e aceitarem tudo, mandarem o julgamento dar uma curva quando aparece na esquina e tornarem assim a vida muito mais simples.
1 * Referência a um célebre dueto com o Herman José. Em jovem, consumia bastante vários programas que o meu amigo Duarte gravava em VHS e juntávamo-nos mais tarde para ver. “O Tal Canal”, “Herman Enciclopédia”, entre outros. Foi também nesta fase muito jovem que comecei a ver filmes como o célebre “Top Gun” ou “Excalibur” do John Boorman, programas como o Conan O’Brien, “Monthy Pyton”.
2 * “Fase seguinte”, pois o programa nunca foi para a frente, mas “ganhei” um lugar num anúncio para o Masterchef, também na TVI, e conheci a Laura Frederico, amiga/colega/criadora. Valeu! O “fim” acabou por nem ser o meu, mas do programa.
3 * Referência a um célebre rant que ele teve para com um técnico no estúdio que decidiu entrar no set mesmo antes do acção para mudar uma lâmpada quando ele procurava concentrar-se para a cena que ia interpretar.