A história de Annie Silva Pais é a de uma mulher que, como tantas outras ao longo dos milénios, viveu à frente do seu tempo. Mas como a História nos tem vindo a ensinar, é precisamente pessoas que não se conformam com o que as rodeia que provocam a mudança e fazem alavancar o futuro, ainda que não se apercebam do impacto que causam.
“Cuba Libre” foi apresentada ao público como a adaptação televisiva do percurso desta personagem real e prometia trazer ao pequeno ecrã «uma lufada de ar fresco muito complexa e emocional», nas palavras da protagonista, Beatriz Godinho. Tudo isto se verifica nos talvez curtos seis episódios da série transmitida pela RTP.
O que começa como uma narrativa leve e até corriqueira, vai avançando nos minutos para um intrincado de personagens, elementos, sentimentos, datas e locais. Se nos capítulos iniciais tudo é colorido, alegre, movimentado e saído de uma imaginação fértil, nos restantes é como se uma nuvem negra avançasse sobre os intervenientes nesta história – especialmente Annie – e deixasse antever um fim triste.
Mas antes disso falemos do que antecede o desfecho. Henrique Oliveira, o criador e realizador de “Cuba Libre”, referia na apresentação da série em Setembro que esta é, talvez, a produção nacional com o maior número de actores estrangeiros. Seja ou não, a verdade é que a variedade de línguas, de feições e de culturas representadas nesta aposta só abona a seu favor. É sempre agradável ver e ouvir um actor a interpretar uma personagem da sua própria nacionalidade ou minimamente semelhante, já que o sotaque sai naturalmente e não causa aquela impressão estranha no espectador de quem sabe que há algo “fora do lugar”.
Pierre Kiwitt, que dá vida a Raymond Quendoz, o marido diplomata de Annie, é um desses melhores exemplos. O actor é germânico de ascendência francesa, o que lhe dá fluência neste último idioma, tal como se esperaria da sua personagem suíça. Além disso, sabe igualmente falar português, o que sem dúvida se provou uma mais-valia nesta narrativa. O arranhar das palavras é real e, sendo assim, credível, tal como deve ser.
Do português ao francês a história de Annie Silva Pais leva-nos ainda pelo espanhol sul-americano, pelo italiano e pelo inglês. Uma amálgama de sons ao longo dos episódios que em tudo completam a vida desta mulher: diferente, saltitante, inesperada e uma completa miscelânea. Porém, não só disso vive “Cuba Libre”, que se agarra de mãos firmes a cenários e caracterizações (quase) exímios.
Gravada em Cádis, Espanha, e não na própria Havana devido à pandemia, a série encontrou na cidade de nuestros hermanos um ambiente bastante semelhante àquele que se poderia encontrar na capital cubana na década de 1960. Quem não estiver a par deste pormenor talvez veja de facto naquelas imagens a casa de Fidel Castro, Che Guevara e também de Annie.
Além dos cenários, que merecem 20 valores, a caracterização não lhes fica atrás. Os anos passam em “Cuba Libre” e passam pelas personagens também. A transformação de Beatriz Godinho, Margarida Marinho, Lia Gama, Heitor Loureço e Pierre Kiwitt demonstra como a história avança e e novas décadas surgem no ecrã. Umas melhores do que outras, é a da protagonista que merece destaque pelo contraste tão chocante e acentuado.
O retrato de quem não se conforma
Numa história sobre uma mulher que não se conforma com o status quo, há um pequeno grande pormenor que dita as acções de Annie: ser a única filha do último director-geral da PIDE. Ao crescer numa família religiosa de classe média alta, com uma mãe severa e num regime de ditadura, poderia esperar-se desta jovem uma atitude submissa e aceitadora. Mas não. Pelo contrário. E isso talvez se deva, em parte, ao seu pai, por ironia do destino.
O retrato que é feito em “Cuba Libre” de Fernando Silva Pais em nada se enquadra no homem que se imaginaria ter sido o último a comandar a polícia política de Salazar. Não raras vezes é-nos permitido até esquecer que aquele não é só o pai da doce e indomável Annie. É esse lado de Fernando, tão bem interpretado por Adriano Luz, que muito provavelmente levou a protagonista, passo a passo, a acabar por se apaixonar por Che Guevara, a juntar-se à Revolução Cubana e a negar tudo aquilo com que cresceu. Pelo menos no que toca a esta produção ficcional.
“Cuba Libre” chega ao fim como uma espécie de biopic de uma figura anónima da História portuguesa, daquelas que, caso a vida lhe tivesse corrido de outra forma, poderíamos ter um presente diferente. É esta a micro-influência que Annie Silva Pais teve ao longo dos anos que caminhou na Terra e que tomou as decisões mais ou menos acertadas.